ADOÇÃO:O DIREITO À VIDA EM FAMÍLIA

19-04-2009 Postado em Publicações por Luiz Carlos Figueirêdo

Luiz Carlos de Barros Figueirêdo – Juiz da 2ª Vara da Infância e Juventude de Recife/PE, pós-graduado em Direito público e Privado pela faculdade de Direito do Recife – UFPE, Coordenador do grupo de Apoio à Convivência Familiar e Comunitária da Frente Parlamentar da Adoção

I- Brevíssimos antecedentes históricos:

Em suas origens mais remotas, nos primórdios da civilização humana, o instituto da adoção teve um caráter eminentemente privatista, com pouca ou nenhuma intervenção estatal, prevalecendo a autonomia de vontades das partes, resultando daí que sempre o que preponderava eram os interesses dos adultos, perdurando em tais moldes por séculos e séculos.
O Código Civil Brasileiro de 1916, notável obra do cearense Clóvis Beviláqua, fruto de sua época, por óbvio, preservava tal conceito secular. Paulatinamente, por influência doutrinária brasileira e alienígena, alterações de códigos civis de outros países e algumas tímidas jurisprudências, modificações de caráter publicista foram sendo a ele incorporadas, na maioria das vezes mera maquiagens sem direção para os aspectos fulcrais.
Esse movimento mundial de transmudação do Instituto da Adoção do campo do Direito Privado para o Direito Público, que ganhou força em vários países do continente europeu para controle das adoções internacionais irregulares, começa a adquirir seus contornos definitivos no Brasil com a promulgação da Carta Política de 1988, com a incorporação de dois aspectos básicos:
a) O princípio de prioridade absoluta para as crianças e adolescentes da Doutrina da Proteção Integral da Organização das Nações Unidas – ONU foi erigido, no art. 227, “caput”, CF, à condição de Princípio Constitucional, como já tive oportunidade de afirmar no livro da minha autoria, “Adoção para Homossexuais”.
b) O instituto da Adoção, quando direcionado para crianças e adolescentes, foi incluído expressamente como norma Constitucional (art.227, §5º e 6º, CF), e unificado, acabando-se com a odiosa discriminação entre as então chamada adoção simples e plena, distinguindo-se as adoções nacionais das Internacionais.

Na esteira da Nova Constituição, em 12 de julho de 1990, foi aprovada a Lei Federal nº8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) sendo que em seu bojo resta criado um “micro-sistema” jurídico específico para à adoção, tratando adequadamente das questões substantivas e adjetivas do instituto, de boa qualidade legislativa neste aspecto, quando muito carecendo de pequenos ajustes, nada que as orientações doutrinárias e jurisprudências e pontuais reformas legislativas não pudessem corrigir.
Por refugir aos objetivos deste trabalho, não aprofundo a análise desta questão, remetendo o leitor à consulta de outra obra de minha autoria, denominada de “Adoção Internacional: Doutrina e Prática”, sendo o objetivo do registro apenas consignar que a partir do ECA o instituto de adoção, para crianças e adolescentes, no Brasil assume contornos marcantes de Direito Público.
A grande produção doutrinária pós-Estatuto, por certo, foi o lastro da mudança de várias e várias orientações jurisprudenciais, assim como motivou a que muitos pais e filhos adotivos saíssem dos guetos onde viviam escondendo suas relações afetivas. Igualmente observou-se a proliferação de grupos de apoio e incentivo à adoção, com a participação de profissionais dos diversos campos dos saberes, dantes desinteressados e incentivadores da chamada “adoção à brasileira”, fenômeno que só existia em larga escala porque a lei estava completamente afastada do fato social (É verdade que hoje já está de tal maneira introjetado na cultura brasileira que ainda levaremos algum tempo para que as pessoas mais desinformadas passem a acreditar mais na Justiça e procurem os caminhos legais para a adoção, mas também é inquestionável que cada vez mais tais adoções à margem da lei estão diminuindo).
Reforçando mais ainda este quadro, através do Decreto legislativo nº01/99, promulgado pelo Decreto nº3.087/99, o Brasil ratificou a Convenção relativa à proteção das crianças e cooperação em matéria de Adoção Internacional, concluída em Haia, em 29.05.93. Em 16/09/99, editou-se o Decreto Presidencial nº3.174/99, definindo as grandes questões a respeito da Adoção Internacional.
Naquele mesmo ano, começara a ser implantado em várias capitais brasileiras um sistema único de controle das adoções, denominado de Infoadote, dando mais confiança e credibilidade aos adotantes em potencial, , de sorte que, como em um conto de fadas, parecia que tudo caminhava para um “happy-end” e que todos estávamos condenados a ser felizes para sempre em matéria da adoção. Ledo engano!
Concebido em 1969 e desde 1975 no Congresso Nacional, “a passo de cágado”, tramitava um projeto de mudança completa e radical do Código Civil, que ninguém acreditava que um dia pudesse ser transformado em Lei.
Anterior à “Constituição – Cidadã” de 1988, não incorporava os grandes avanços sociais nela trazidos. Não assumia as modernidades tecnológicas, econômicas, genéticas, etc, ocorridas no mundo nestes quase trinta anos, para regular as relações jurídicas decorrentes.
Duvido que qualquer leitor possa mencionar um único país sério do mundo que, nos últimos 100 (cem) anos, tenha jogado seu Código Civil na lata de lixo para editar um novo Código completamente diferente, mais ainda quando o anterior era reconhecido universalmente como uma obra jurídica portentosa. O que sempre ocorreu, em qualquer pais civilizado, pela lei natural das coisas, é que as evoluções das relações humanas recomendam permanentes alterações legislativas para aperfeiçoamento. Era este o discurso inicial de todos os grandes civilistas convocados para a coordenação dos notáveis que estudavam a reformulação do Código Civil, infelizmente abandonado logo após, somente se explicando pela natural vaidade humana de ser o “Novo pai do Código Civil”, um Rui Barbosa ou mesmo um Clovis Beviláqua redivivo.
Mais ainda, o Senado Federal modificou completamente (na maioria das vezes para melhor, registre-se), pelo relator – Senador José Fogaça – a versão originalmente aprovada na Câmara dos Deputados, fato que, pelas regras constitucionais e regimentais que regem o processo legislativo, implicaria na necessidade de retorno à Câmara para reapreciação.
Nesta ocasião, é escolhido como relator o Deputado Federal pernambucano Ricardo Fiúza. Sejam correligionários ou adversários políticos, identificados ou antagônicos ideologicamente, é unânime o conceito de que se trata de um homem obstinado. Expoente do “centrão” na reforma constitucional, líder do governo e ministro da era Collor, a quem foi leal até o último minuto, quase afastado da vida pública, inclusive não concorrendo à reeleição logo após a queda do Presidente Fernando Collor, penso eu, o insigne deputado viu nesta relatória a possibilidade de mudar para sempre a sua imagem de parlamentar, passando a ser destacado como jurista, dedicando-se de corpo e alma a esta nova missão. Assessorado de grandes juristas, dentre os quais o professor Mário Delgado e o Desembargador pernambucano Jones de Figueirêdo Alves, criou e conseguiu aprovar em ambas as Casas um Decreto Legislativo dando uma nomenclatura de “Emenda de Aglutinação” ou similar, pela qual as mudanças constitucionais e infra-contitucionais posteriores estariam automaticamente incorporadas ao novo texto, encontrando neste artifício o remédio jurídico e político para fazer desencalhar a tramitação legislativa.
Quando menos se esperava, o projeto estava votado e aprovado, com pouco ou nenhum debate, e a nação vivendo a expectativa do período de “vacatio legis”, que se findou em 10 de janeiro de 2003.
Não acredito que na história mundial das aprovações de leis exista um caso similar, com tamanho paradoxo. Mais de 25 (vinte e cinco) anos de tramitação e desconhecimento completo daquilo que foi aprovado.
A festa das editoras de livros jurídicos estava completa. Todas as obras comentando o novo Código Civil esgotavam suas primeiras edições em questão de meses, nem sempre pela excelência jurídica dos comentários, e muito mais para servir de vela para iluminar um pouco os caminhos dos operadores do direito. A propósito, este baile já tem a próxima sessão prevista, na medida em que o próprio relator do Código Civil, em uma louvável atitude de reconhecer erros, ainda em setembro de 2002, apresentou o Projeto lei nº6.960/02, através do qual pretende mudar nada mais nada menos do que 208 (duzentos e oito) artigos do novo Código Civil, tornando, assim, obsoleta toda a doutrina hoje disponível. Até então, só os editores de livros didáticos no Brasil gozaram da privilegiatura de a cada ano letivo mudar questiúnculas nos livros para evitar que fossem eles reaproveitados.
Nem é este o objetivo do presente estudo, nem me sinto capacitado a analisar o impacto causado pelo novo Código Civil em outros institutos jurídicos, mas, no campo da adoção, sem qualquer exagero, e como se um gigantesco incêndio tivesse queimado metade da floresta Amazônica. Se o Projeto da Lei 6.960/02 vier a ser aprovado, a outra metade também estaria incendiada e o rio amazonas sem uma gota d’água.
É sobre essa nova realidade (convivência do ECA e o NCC) e a perspectiva da revogação dos artigos do ECA que tratam da adoção, prevista no aludido Projeto de Lei nº6.960/02 que este trabalho finca suas raízes, para propor uma nova e duradoura solução para o instituto.

II – Os micro-sistemas jurídicos:

Independentemente das críticas de conteúdo que serão tecidas oportunamente, e mesmo dentre os que com ela concordem, sempre haverá quem acredite que a solução seria corrigir os artigos do Código Civil que tratam da adoção, deixando-o como depositário de todas as normas do Direito de Família e da Adoção, como de resto de todo o Direito Civil.
Além das questões antes apontadas sobre a boa qualidade do “micro-sistema” de adoção contida no ECA, análise praticamente irrelevante com a vigência do novo Código Civil, e totalmente fora de propósito se o projeto de lei nº6.960/02, vier a ser aprovado na forma original, revogando os arts. 39 e 52 do ECA, quero crer que os defensores de tal unicidade em matéria civil labutam em equívoco, seja pela autonomia e caráter publicista que o instituto ganhou com o passar dos tempos, seja pela sua inserção no texto constitucional, seja em função dos Tratados e Convenções internacionais firmados pelo Brasil nesta matéria.
Sobre esses micro-sistemas jurídicos, veja-se o que diz Caio Mário da Silva Pereira, indubitavelmente o maior civilista brasileiro vivo: “O Código Civil exerce hoje um papel residual, diante de uma nova realidade legislativa, onde os ‘micro-sistemas’ e leis especiais constituem polos autônomos, dotados de princípios próprios, impondo inovadora técnica interpretativa”. “Diante do Novo Código Civil, caberá aos operadores do Direito e aos juristas do novo milênio o desafio de conciliar novos parâmetros, prevalecendo o bom senso, criatividade, e, algumas vezes, muita imaginação”.
No mesmo sentido, Marco Aurélio Sá Viana expressa: “Devemos entender a questão em termos corretos: a generalidade de princípios numa lei geral não criar incompatibilidade com regra de caráter especial; a disposição especial disciplina o caso especial, sem afrontar a norma genérica da lei geral, que, em harmonia, vigorarão silmutaneamente”. De sua parte, Tânia Pereira da Silva pontifica: “O Código Civil deixa de constituir-se o centro geométrico da ordem jurídica, passando ao primado da Constituição.”
Antunes Varela afirma: “Micro-sistemas são satélites autônomos que procuram regiões próprias na órbita incontrolada da ordem jurídica”… “e reivindicam áreas privativas e exclusivas de jurisdição e que tendem a reger-se por princípios diferentes dos que inspiram a restante legislação.”
Em magnífica palestra proferida no Tribunal de Justiça de Pernambuco, sob o título “Transformações no novo Código Civil” em 19 de maio/2003, o mestre Paulo Luiz Netto Lobo fez as seguintes afirmações: “Novo Código surge e, ao lado dele, alguns micro-sistemas permanecem. Como estabelecer a relação entre o novo código e esses micro-sistemas? E esses micro-sistemas alguns ressaltam da importância como o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente…” “Esses micro-sistemas têm uma característica diferenciada, normalmente absorvem vários ramos do Direito, ao contrário da tradição das grandes codificações que eram monotemáticas, o Código Civil tratava de relações civis, o Código penal tratava de relações estritamente atinentes a crimes e contravenções e assim por diante. O que nós temos nessas micro-codificações são reuniões interdisciplinares de vários ramos que regulam uma mesma matéria e, por isso, a sua impossibilidade de inserção nas grandes codificações do mundo. Vejam o exemplo do ECA…, lá nós encontramos Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Processual Penal, Direito Administrativo e não há como separar essas áreas, elas são naturalmente imbricadas e daí essa grande dificuldade”.
“Se nós formos buscar os três mecanismos tradicionais, que Noberto Bobbio se refere, por exemplo, de superação das antinomias, nós lá encontraremos, o critério da hierarquia da normas, o critério cronológico e o critério da especialidade. Nenhum dos três rigorosamente ou os três podem resolver o problemas dessa interlocução entre um código novo que surge com a grandeza de destinação que tem o Código Civil, que envolve cada um de nós no seu dia a dia e estas micro-codificações ou esses micro-sistemas, e, por isso, a necessidade, porque sempre haverá a necessidade de uma interpretação em que há uma entrada e saída permanente de uma norma sobre outra, e, por isso que essa interlocução dessas normas só poderá se fazer a contento com a mediação da Constituição. Antes, nós tínhamos, ao longo de mais de um século, muito mais do que isso, nós tínhamos o Código Civil como a centralidade das relações jurídico-civis, e hoje esse papel ele já não pode mais desempenhar. Por que? Porque a Constituição permanece como a referência primária necessária daquilo que é mais importante no trato das relações civis.”
“Mas certamente o Código vai sofrer muitas alegações de inconstitucionalidade aqui e ali como a doutrina já vem apontando em determinados preceitos. Esse processo de interferência recíproca a partir da primazia da Constituição tem sido chamado no Brasil de Constitucionalização do Direito Civil.”
Inquestionavelmente, no mundo jurídico moderno, a tendência é legislar-se pela via dos “micro-sistemas”, abandonando-se a visão codicista da era napoleônica.
O micro-sistema da adoção estava bem legislado como se demonstrará a seguir, o novo Código Civil ou nada alterou na norma passada (no dizer popular “choveu no molhado”), praticamente nada somou, mas muito subtraiu, impondo-se uma analise pontual de cada caso, cotejar-se o impacto à luz dos princípios gerais do direito e das regras da Lei de Introdução ao Código Civil, medidas que fatalmente conduzirão a que se proponha a criação de um novo micro-sistema da adoção.

III – A análise dos dispositivos do Novo Código Civil que tratam da matéria:

A primeira constatação de uma leitura acurada da norma nova é que ela, como antes afirmado, apenas repete ou nada soma ao que já existia no mundo jurídico, de sorte que totalmente dispicienda sua edição, senão vejamos:

a) O novo Código Civil manteve (art. 1596) a igualdade absoluta, entre filhos biológicos (casamento ou não) e os adotivos (mera repetição da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e Adolescente e Leis sobre Planejamento Familiar); b) manteve (art.1619) a diferença de idade entre o adotante e o adotado em 16 anos, perdendo a chance de expressamente disciplinar que se for adoção conjunta basta que a diferença ocorra em relação a um dos adotantes (mesma omissão do ECA); c) manteve (art.1620)a mesma injustiça do ECA ao permitir que o tutor ou curador que alcançou o patrimônio do adotando possa adotá-lo se saldar o alcance (É vantagem para o adotando?); d) manteve (art. 1621) a regra geral da concordância dos pais (preservando a adoção “Intuito Personae”), mantendo a absurda exigência do ECA obrigando a concordância do maior de 12 anos, que é absolutamente incapaz segundo regra do artigo 3º do próprio Código Civil; e) manteve (art.1622) o princípio de que a adoção pode ser feita em conjunto por marido/mulher, união estável, divorciados e separados, mantendo nas duas últimas hipóteses, as exigências de que a convivência tenha se iniciada antes do desenlace , ao meu ver descabida, pois nada obsta que relações afetivas se formem entre a criança e o ex-conjuge ou companheiro, recomendando regra menos rígida, que permita a análise de cada caso concreto; f) No art.1626 repete regras do ECA ao desligar do parentesco biológico e admitir a adoção unilateral; g) repete (art.1628) regras do ECA sobre os efeitos da adoção, inclusive adoção “post mortem”; h) repete (art.1629) a Constituição Federal de 1988 e as regras do ECA sobre adoção por estrangeiros, remetendo para Lei específica, omitindo-se a respeito da função da Convenção de Haia sobre Adoção Internacional (equivalente a uma lei ordinária, por força de sua ratificação), além de perder a oportunidade de promover uma melhor redação do artigo 31, ECA, para evitar interpretações tendenciosas em favor de adotantes estrangeiros; i) Em matéria de omissões, pode-se dizer, ainda, que: o novo Código Civil perdeu a oportunidade de tratar sobre alguns temas polêmicos e atuais, dentre os quais:

I- Adoção por Homossexuais; II- Incentivos à adoção para casos particularmente difíceis.

Sintetizando, não tenho dúvidas de que tais omissões decorrem da constatação evidente de que a norma nova não assimilou o princípio constitucional da prioridade absoluta para crianças e adolescentes.
Além das omissões aludidas anteriormente, o NCC não explicita se ainda vale a regra do ECA sobre se continua tramitando na Justiça da Infância e da Juventude as adoções para pessoas entre 18 e 21 anos, até porque em uma interpretação harmônica os preceitos do ECA continuam vigorando, já que não houve revogação expressa.
Sintetizando as inovações, dignas de registro, cabe apontar, as seguintes: a)O novo Código Civil (art.1627) inova perigosamente as regras do ECA sobre inclusão do sobrenome e mudança do prenome do adotado, ao permitir que a opção possa ser feita pelo adotado, na medida em que filho biológico não escolhe o seu prenome e a regra constitucional busca a igualdade absoluta da filiação; b) Reduz a idade mínima para adotar para 18 (dezoito) anos de idade (por força da redução da maioridade civil), mantendo a lógica do ECA de que se em conjunto basta que um dos adotantes tenha esta idade. Eventual imaturidade do adotante deve ser analisada à luz dos quatro conceitos básicos do ECA (ambiente familiar adequado, não revelar incompatibilidade com a natureza da medida, o pedido fundar-se em motivos legítimos e apresentar real vantagem para o adotando); c) O novo Código Civil inova ao exigir adoção judicial para os maiores de 18 anos (finalmente algo novo e meritório para controlar fraudes), embora o antes aludido projeto de lei nº6.960/02, do próprio relator do NCC, proponha abolir esta inovação, criando uma figura caricata de homologação pelo Ministério Público.
Lamentavelmente, a maioria dos problemas não se circunscrevem no âmbito dessas repetições e omissões antes apontadas e sim no muito que foi subtraído dos direitos da criança e do adolescente e que já estavam adequadamente legislado no Estatuto.
Inicialmente, como a maioria esmagadora dos casos de adoções legais são direcionadas para crianças cujos pais perderam o poder familiar por sentença irrecorrível, impõe-se breves comentários sobre este instituto que antecede à colocação em família substituta.
A primeira substração se materializa no fato do novo Código Civil, no art. 1.635, haver tratado, indevidamente, a perda como uma espécie do gênero extinção do poder familiar, contra uniforme orientação doutrinária e jurisprudencial que vê a perda como punição, sendo, portanto, gênero próprio. Além disso, não diz quem é legitimado para propor a perda do poder familiar, tendo alguns dos seus defensores argumentado que a omissão foi deliberada, por se tratar de matéria processual. Mas, estranhamente, trata dessa “matéria processual” quando legisla sobre a suspensão do poder familiar, restringindo a legitimação ao Ministério Público e parente, o que materializa enorme retrocesso frente ao ECA, que fala em “quem detenha legítimo interesse” (portanto, moral, econômico e jurídico).
Não bastasse isso. o novo Código Civil, repetindo o Código revogado, em seu art. 1.637, limita a suspensão do poder familiar ao descumprimento, por parte dos pais, dos seus deveres, materializando conflito com os artigos 22/24 e 155 e seguintes do ECA, cujas redações são mais abrangentes, pois a sua prioridade é proteger as crianças e adolescentes e não os adultos.
Ao meu ver, um dos maiores equívocos do novo Código Civil, pode ser encontrado no art. 1.638, IV, o qual, ao contrário do ECA (art.24), diz que o descumprimento dos deveres do poder familiar só é causa para sua perda em caso de reiteração, quando o Estatuto usa expressão bem mais apropriada: injustificadamente. Já se disse que um exemplo vale por mil palavras, e, por tal razão, proponho que o leitor deste artigo medite sobre a solução jurídica adequada se for aplicada uma ou outra expressão (reiterada ou injustificada) nos dois exemplos a seguir: a) Pai pobre que não alimenta seu filho nas três refeições diárias; b) pai que joga filho no párabrisa do carro uma única vez.
O resultado dessa fórmula simples de hermenêutica confirma a teratologia da nova redação.
Embora sem a mesma gravidade, também é digno de registro o conflito terminológico entre as expressões justificadoras para a concessão da adoção contidas no art.43 do ECA (“real vantagem para o adotando”), substituída no NCC (art.1.625), por “efetivo benefício”, pois é óbvio a maior amplitude da terminologia da Lei nº8.069/90.
Não precisa ser nenhum especialista em hermenêutica jurídica para se constatar que os conflitos de normas são reais e não apenas aparentes, obrigando aos aplicadores da lei a fazerem opções claras por ocasião de análise de cada caso concreto frente as regras da LICC (Lei posterior em colisão com lei anterior não revogada expressamente) e o princípio da hierarquia das lei (NCC = Lei Complementar X ECA = Lei Ordinária).
Neste sentido, enquanto juiz da 2ª Vara da Infância e da Juventude do Recife, que detêm competência exclusiva para processar os feitos de decretação de perda do poder familiar e de adoção e seus incidentes, segundo a lei Complementar Estadual nº31/99, tenho aplicado os seguintes posicionamentos:
a) Para o caso da omissão dos legitimados a propor a perda do poder familiar, entendo ser perfeitamente possível uma interpretação harmônica, como conseqüência aplicando-se as hipóteses do ECA (art.155), até porque o NCC foi omisso na matéria;
b) Para a redução das hipóteses de suspensão e uso da reiteração em lugar do injustificado abuso do poder familiar: controle difuso de constitucionalidade, com declaração incidente, negando aplicação à norma nova, por violar os princípios constitucionais de prioridade absoluta (art.227 CF); Dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); Objetivo fundamental de erradicar a pobreza e promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 2º, III e IV); Prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II); Igualdade de todos perante a lei (art. 5º); Convivência familiar e comunitária (art.226 CF).
c) Para o conflito terminológico entre as expressões: efetivo benefício x real vantagem, estou convencido que pode ele ser resolvido por via de interpretação harmônica, pois não houve revogação expressa do artigo do ECA que trata da matéria.

Dentre os mais graves problemas trazidos pelo novo Código Civil destaca-se a disposição que diz que a ADOÇÃO se materializa por meio de simples averbação (art. 10, II), em conflito com o ECA (art.47), que manda cancelar o registro velho e lavrar registro novo. É evidente o prejuízo causado à criança na medida em que matou o conceito de “nascer de novo”. Ofendendo a Constituição Federal que determina prioridade absoluta e igualdade de filiação. A propósito, no meu site (www.abmp.org.br/sites/luizcarlos) a pessoa que estiver interessada pode ter acesso a sentenças fazendo o controle difuso de constitucionalidade, tanto na hipótese supra, como no caso da substituição da expressão injustificado por reiterado.
Também me parece gravíssimo o fato do novo Código Civil, no art.1.624, além de usar terminologia pejorativa (“menor exposto”), criar para os órfãos a espera obrigatória de um ano para eventual interesse de algum parente, norma que venho chamando de forma debochada de “cláusula geladeira”, a qual, para mim, é inconstitucional, pois o direito à convivência familiar e comunitária não se condiciona a nenhum lapso temporal, recomendando declaração incidente de inconstitucionalidade.

Conclusão:

Parece inquestionável que o caos se instalou por completo no sistema de adoção. É algo muito maior do que querelas de correntes jurídicas doutrinariamente antagônicas.
As dúvidas e diferenças de interpretação que, a bem da verdade, já eram perceptíveis antes do novo Código Civil, com pessoas evitando pleitear adoção em determinadas comarcas, em razão de interpretações gramaticais e inflexíveis de alguns juízes e promotores, multiplicaram-se por mil.
O resultado observável neste menos de um ano de vigência do NCC pode ser resumindo em: a) ignorância solene de nova lei, aplicando-se apenas o ECA; b) aplicação exclusiva do Código; c) tentativas de interpretações harmônicas; d) indefinição da Justiça adequado para as adoções de adultos; e) dilatação dos prazos das ações de decretação da perda do poder familiar; f) ampliação da permanência das crianças e adolescentes nos abrigos, todos eles cada vez mais superlotados, etc; g) técnicos dos juizados sem saberem orientar o pessoal dos abrigos ou potenciais adotantes, o mesmo se verificando nos grupos de apoio à adoção.

É provável que exista um lado invisível tenebroso, materializando-se no incremento das adoções à margem da lei (adoção à brasileira), ou, pior ainda, de pessoas e casais desistindo dos seus projetos adotivos, fato que só vai ampliar o número das crianças e adolescentes institucionalizados.
Urge recriar o micro-sistema de adoção.

Não se trata de ofender ao ECA, como pensam alguns. Isto já foi feito pelo novo Código Civil, à luz dos conceitos jurídicos antes analisados sobre revogação de leis contidas da Lei de Introdução ao Código Civil e no Princípio da hierarquia das leis.

Muito ao contrário. A idéia é devolver as bases filosóficas que norteiam o Princípio da Prioridade absoluta das Organizações das Nações Unidas – ONU, que perpassa e dá sentido ao Estatuto, restabelecendo os seus conceitos fundamentais, sendo irrelevante que tal ocorra no corpo da lei velha ou se materialize em uma lei nova.

Sob tal prisma, a hora é de se produzir uma lei que efetivamente enquadre os multifacetados aspectos da adoção, restabelecendo o que já era contido no ECA, agregando-se os bons aspectos de diversos projetos de lei que já tramitam no Congresso Nacional e inovando em aspectos que ainda não haviam sido objeto de quaisquer propostas legislativas.

Neste sentido, por iniciativa do Deputado catarinense João Matos, foi instalado em abril de 2003 a Frente Parlamentar de Adoção, a qual em meados de agosto do mesmo ano já contava com 102 integrantes de todas os partidos políticos com assento no Congresso, já sendo a segunda maior frente de todas as existentes no legislativo federal.

Igualmente por sua ação, constituiu-se a Comissão Nacional de Apoio à Convivência familiar e comunitária, formada por juristas, psicólogos, assistentes sociais, integrantes de grupos de adoção, etc, com a função de assessorar a referida Frente Parlamentar, da qual tenho a honra de ser o coordenador, por escolha dos demais integrantes.

Com denodo, perseverança e, principalmente, com o somatório dos saberes multidisciplinares, consultando-se demais pessoas interessantes no tema, colocando-se o texto básico para sugestões na Internet, resultou na produção de um ante-projeto consistente, assumido integralmente pelo Deputado João Matos, que o apresentou à Câmara dos Deputados para apreciação nessa Casa e depois no Senado Federal. (PL nº1756/02)

O processo democrático de sua elaboração, a base parlamentar sólida resultante da prévia formação da frente antes aludida, são os pilares técnicos, jurídicos e político com as quais se espera seja possível a aprovação do Projeto de Lei, transformando-o na “Lei Nacional da Adoção”, na máxima brevidade possível, quem sabe até em prazo hábil de ser submetido à sanção presidencial em 25 de maio de 2004 (Dia Nacional da Adoção, segundo a Lei nº 10.447/02, por sinal, também criado por iniciativa do mesmo deputado João Matos).

Apenas para servir de contra-ponto com as críticas por mim antes apontadas às normas vigentes, apresenta-se uma síntese apertada das diversas conquistas que poderão ser obtidas com a aprovação do novo texto: I- Definição conceitual do que seja adoção , estranhamente não contemplada em nenhuma legislação anterior; II- Identificação de quem pode adotar e quem podem ser adotado; III- Regras materiais específicas para a adoção de crianças, adolescentes e adultos; IV- Obrigatoriedade de criação de um banco de dados nacional de adoção, alimentado pelos bancos de dados estaduais e pelos cadastros de cada comarca do país, com sanções para as autoridades que não tomarem iniciativas de sua responsabilidade para sua implantação; V- Fixação de regras procedimentais próprias para todas as modalidades de adoção e seus incidentes; VI- Regras próprias para as adoções internacionais, compatíveis com a Convenção de Haia sobre a matéria e com os avanços já alcançados neste aspecto, em especial na fixação das competências das Autoridades Centrais Estaduais e na Autoridade Central Administrativa Federal; VII- Complementação das regras recursais estabelecidas no ECA, de moldes a assegurar agilidade na tramitação dos processos nos Tribunais de Justiça; VIII- Aperfeiçoamento das regras das “licença-maternidade” e “auxílio-maternidade”; IX – Criação da “licença-paternidade” para pais adotivos solteiros; X- Criação de “subsídio-adoção”, em favor dos servidores públicos que adotarem crianças que se encontrar institucionalizadas; XI- Incentivos fiscais, mediante duplicação do valor dedutível do Imposto de Renda de Pessoa Física -IRPF, para pessoas que adotarem crianças e adolescentes institucionalizadas, em casos particularmente difíceis, como grupos de mais de 03 (três) irmãos, com deficiência física e/ou mental severa, assim como portadores de vírus HIV; XII- Em matéria de abrigamento, mesmo não sendo o seu campo próprio de incidência, mas em função da íntima relação que tem com a questão da adoção, o Projeto de lei trata da criação de guia obrigatória para inclusão de crianças e adolescentes em abrigos, com cópia ao Ministério Público, visando a competente fiscalização; limita a capacidade de abrigados em cada entidade; obriga a presença de equipes técnicas nos abrigos; legitima seus dirigentes para proporem ações para decretação da perda do poder familiar, etc; XIII- Pelas mesmas razões do item anterior, a legislação proposta também cuida de fixar regras e prazos para reiserção na família natural, inclusão nas residências de parentes próximos, ou, se necessário, ajuizamento de ação para perda do poder familiar.

Como se vê, todos os passos dados até agora foram com competência e profissionalismo. As próximas etapas do processo legislativo, com votações em comissões específicas e no plenário, até a sanção e promulgação, ainda representam um longo caminho a percorrer.

Para que se consiga criar esta nova legislação que realmente atenda aos anseios dos adotantes, profissionais que trabalham com adoção, e, principalmente, das milhares e milhares de crianças que anseiam um dia ter uma família com alguém para chamar de “pai” e/ou “mãe”, faz-se indispensável uma imensa mobilização popular com contactos diretos com parlamentares, expedição de “e-mails”, apresentação de abaixo-assinados, etc. Se isto for possível de mobilizar, em breve tempo o Brasil terá a mais moderna legislação sobre adoção do Mundo.

Nenhum comentário

Deixe seu comentário. Seu e-mail não será revelado.