No rastro das inúmeras manifestações de rua iniciadas em junho de 2013, encetadas por jovens paulistanos que integram o “movimento passe livre”, diversas demandas foram trazidas à tona deste imenso “iceberg” que é o Brasil. A grande maioria delas justas, mas que tinham pouca visibilidade. Como exemplo disso, cito a famigerada PEC 37, que restringia a atuação do Ministério Público, quando se viam centenas de pessoas com placas contra a mesma ou replicando a necessidade de sua rejeição no facebook, sem sequer saberem de que se tratava e qual o seu alcance. A pessoa que teve a sensibilidade de perceber a relevância de sua inclusão no discurso da mudança do país é um gênio. Ao reboque, outras tantas PEC’s que atentam contra a democracia, independência e harmonia dos Poderes deverão igualmente ser rejeitadas.
Por coincidência, ou não, na mesma época, em matéria veiculada pelo jornal carioca “O Globo”, ressurge das cinzas, requentadíssima, a ideia de entrega de crianças e adolescentes a candidatos habilitados à adoção no Cadastro Nacional, antes mesmo dos pais biológicos terem a perda do poder familiar consumada, com sua mera suspensão, sob o fundamento de que é preciso agilizar a garantia do direito constitucional à convivência familiar e de que a Justiça é lenta e impede o exercício deste direito.
Cabe lembrar que a “velha/nova” proposta já foi apresentada anteriormente e devidamente rechaçada, brandindo contra o Conselho Nacional de Justiça-CNJ, que ao criar o Cadastro nacional de Adoção, em 2008, fê-lo com a inclusão exclusiva de crianças/adolescentes cujos pais tiveram decretada a perda do poder familiar em sentença transitada em julgado.
Em primeiro plano, é preciso registrar que os magistrados que compunham o Comitê Gestor do CNJ que formulou o projeto do Cadastro Nacional aquele colegiado e passou a geri-lo e a capacitar os profissionais dos estados após a aprovação da Resolução nº 54 /2008 eram todos eles experientes, responsáveis e reconhecidamente comprometidos com a causa da infância, dentre os quais modestamente me incluo, e mais as Drs. Andrea Pachá e Cristiane Cordeiro, ambas do Rio de Janeiro, o Dr. Francisco de Oliveira Neto, de Santa Catarina e o Dr. Antônio Silveira Neto, da Paraíba, sendo óbvio que nenhum deles desejou ou deseja lentidão processual, mas garantias de irreversibilidade, tanto para os adotantes como, principalmente, para os adotandos.
Exatamente por conter elementos sedutores (celeridade sob o pálio do sistema de Justiça), a ideia prosperou, surfando nessa onda de mudar tudo no Brasil, lamentavelmente, dentro do movimento dos grupos de apoio à adoção, penso que pelo fato de congregarem inúmeros pretendentes à adoção, cadastrados no CNA, que estão desiludidos com a demora na consecução dos seus respectivos projetos adotivos.
Como ex-juiz da infância, professor universitário, autor de livros sobre o tema, coordenador da infância e juventude do TJ-PE, ex- integrante do comitê gestor do CNA, pai adotivo, e, em especial, por ser detentor da láurea de “amigo da Adoção” outorgada pela Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção-ANGAAD, me senti na obrigação de prestar os presentes esclarecimentos, tentando minimizar riscos de que pessoas de boa vontade, mas incautos, caiam nesse “Canto da Sereia”, tomando por empréstimo o título deste artigo em poesia do genial Carlos Pena Filho.
Trago a depor em favor do meu posicionamento o recente episódio da comarca de Monte Santo – BA, amplamente divulgado na mídia nacional. Um juiz bem intencionado, querendo celeridade e assegurar convivência familiar, em processo que, até então, tramitava em prazos razoáveis, autoriza “termos de responsabilidade” em favor de pessoas idôneas, oriundas de outro estado, inscritas no CNA, em relação a crianças cujas histórias de vida faziam presumir que, ao término do processo, ainda que houvesse recurso, seus genitores seriam destituídos do poder familiar. Como no Brasil reina a regra de que “tudo que é provisório se transforma em definitivo”, o feito foi sendo relegado a um segundo plano, até que o juiz original é removido, sendo substituído por outro, que não teve a sensibilidade de perceber que se tratava de “error in procedendo”, plenamente corrigível, o qual fez alarde na imprensa, tomando as crianças e as devolvendo à família desestruturada, processando civil e criminalmente os adotantes.
Desse “imbróglio” resta o segundo juiz respondendo a procedimento disciplinar administrativo, pais e irmãos adotivos fragilizados emocionalmente, genitores e crianças desaparecidos, e só Deus sabe em quais condições vivem hoje.
Quem se habilita a passar por um drama deste? Lógico que junto com a decisão de adotar e a inscrição no CNA todos esperam um prazo razoável para serem chamados, próximos àqueles de uma gravidez biológica, mormente quem não formulou maiores exigências de raça, faixa etária, gênero, etc.
Sempre repito que o positivismo só sobrevive nos sistemas jurídicos de todas as democracias em razão de oferecer algo que nenhum outro oferece, qual seja: “segurança e certeza”. Para ser inseguro, melhor seria se arriscar pela janela da ilegalidade, em especial em um país que chega a dizer no Código Penal que pode ser reconhecido o crime de falsa declaração de paternidade/maternidade, mas não puni-lo, se as razões para a contrafação do documento público foram nobres.
De tudo isso, emerge que o fundamental é se agir para que os procedimentos de decretação de perda do poder e de adoção tenham uma tramitação célere, na lógica constitucional da razoável duração do processo. Surge então uma pergunta vital: “Por que em diversas comarcas, muitas vezes sem apoio de corpo técnico, consegue-se que a tramitação de todos esses feitos correlatos (perda do poder familiar; habilitação de adotantes; guarda provisória, adoção, etc.) aconteçam em prazo razoável e em outras não?”.
É preciso lembrar que a lei estabelece prazos máximos de acolhimento institucional; de reavaliação do acolhimento; de ajuizamento da ação para DPPF; de tramitação processual; de inscrição no cadastro; de julgamento recursal, além de punições inimagináveis em outras legislações. Entretanto, equivocadamente, não é expressa em impor que recursos contra sentenças de decretação de perda do poder familiar devam ser recebidos tanto no efeito devolutivo, como suspensivo, pois, inegavelmente, se a decisão for modificada, causará dano irreparável ou de difícil reparação, tanto aos genitores como aos adotantes, mas especialmente aos adotados, ao entrarem em uma família, criarem vínculos afetivos e depois serem delas apartados para voltarem a viver com a família natural.
A alegação de que são raros os casos de devolução ou mudança da sentença de 1º grau seria cômica, se não fosse trágica. Para quem passa por um drama desse o percentual de frustação e sofrimento é sempre o mesmo: 100% (cem por cento). E vai acompanha-lo pela vida inteira.
Ao invés desse “salto triplo carpado” processual, que apenas retira o processo do birô do juiz, mas nada define, sugiro aos defensores de tal proposta, que não sofrem as dores psicológicas de um fracasso como o de Monte Santo, que procurem dar um choque de gestão em suas unidades jurisdicionais, indo desde a identificação de prioridade nas capas processuais, a qualificação e incentivos motivacionais aos serventuários e equipes técnicas, a uniformização de procedimentos, a implantação de modelos de despachos e sentenças, o estabelecimento de metas, etc.
Sem querer que uma alternativa viável em um lugar possa simplesmente ser replicada em outro, registro que em Recife, desde 2001, optou-se por uma solução institucional, que vem tendo êxito desde o seu início, consistente em atribuir a apenas uma das varas da capital a competência exclusiva de processar e julgar os feitos relativos à adoção(nacional e internacional), cadastramento de pretendentes e de decretação da perda e/ou suspensão familiar. Na Lei de Organização Judiciária local, os demais feitos cíveis ficam em outra vara, com duas unidades para processos de conhecimento de apuração de ato infracional e uma de execução das medidas socioeducativas e mais duas para os crimes contra crianças e adolescentes. Tal mudança ensejou agilidade nos processos de adoção e seus correlatos, se revelando bem mais adequada do que simplesmente se criar varas com competência comum e cumulativa, ou por bairros ou de meras novas unidades com competência separada em infracionais e cíveis, como ocorre em várias capitais brasileiras.
LUIZ CARLOS DE BARROS FIGUEIRÊDO
COORDENADOR DA INFÂNCIA E JUVENTUDE TJ-PE