Demandas judiciais de saúde em favor de crianças e adolescentes

20-06-2020 Postado em Artigos por Luiz Carlos Figueirêdo

Luiz Carlos de Barros Figueirêdo
Corregedor-geral da Justiça do Estado de Pernambuco

Publicado em: 20/06/2020 03:00

Questão interessante a respeito de saúde é saber se os pedidos individuais de crianças ou adolescentes, representados pelos pais ou responsáveis, para dispensação de medicamentos ou tratamentos médicos devem ser processados e julgados nas varas com competência em Fazenda Pública ou Infância e Juventude. Advêm daí alguns conflitos negativos de competência, retardando a prestação jurisdicional, trazendo insegurança jurídica e pondo em risco a vida do beneficiário.

O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), em junho, julgou dois desses conflitos, ocasião em que, por maioria de votos (18 a 1), em casos de relatorias dos desembargadores Bartolomeu Bueno e Fábio Eugênio, a Corte decidiu que a matéria deve ser apreciada pelo juízo Fazendário. À idêntica conclusão, chegou o TJ de Goiás em maio deste ano. Retoma-se, assim, a orientação da jurisprudência tradicional do Superior Tribunal de Justiça (STJ), pois, paulatinamente, novos acórdãos daquela Corte de superposição já não consideravam a baliza expressa da lei, de que ao juízo da Infância somente compete os casos em que as crianças e adolescentes estejam em risco pessoal ou social, o que estava influenciando a jurisprudência dos tribunais estaduais.

A gravidade pode ser destacada em dois exemplos: o TJ da Bahia editou Resolução dizendo expressamente que a competência em tais casos é da vara Fazendária, mas, julgando Agravo de Instrumento, determinou que o processo fosse julgado na vara Infanto-juvenil; e o TJ de Minas Gerais editou Resolução dizendo que tais casos deveriam tramitar na vara da Infância e Juventude.

Nos votos do TJPE, foram destacados pontos como as regras dos artigos 98 e incisos e 148, inciso IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sobre a proteção dos direitos individuais, a especialização do juízo da Infância, bem como a previsão das Ações Civis Pública, no artigo 208 e seguintes, do ECA, relativas à proteção de interesses individuais (desde que homogêneos), difusos e coletivos da criança e do adolescente. A partir dessa decisão, entendi conveniente enviar expediente sobre o tema ao presidente da Comissão Gestora de Precedentes do STJ, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, aditando anterior ofício remetido em dezembro/2019 àquela autoridade, em razão de, no âmbito daquela comissão, em março deste ano, haver sido sorteada como relatora sobre a fixação de tema de Recurso Repetitivo a ministra Assussete Magalhães.

Não ponho em dúvida as boas intenções que devem ter norteado tal posicionamento, em razão da quantidade estratosférica de processos nas varas Fazendárias, bem assim de que, sem maior investigação hermenêutica, é possível se tentar traçar um paralelo entre ações relativas à saúde com aquelas que dizem respeito à educação. Entretanto, é importante frisar que a lógica aplicável ao tema educação não se presta para a questão da saúde, pois, em matéria educacional os pais estão obrigados a matricularem os filhos no ensino regular, público ou privado, sob pena até de privação de liberdade; enquanto que, em saúde, podem fazê-lo utilizando-se do Sistema Único de Saúde (SUS) e de seguro-saúde, particular, adquirindo medicamentos diretamente nas drogarias, pois parte nem exige receita médica, ministrando a medicação em casa, etc. Ou seja, é direito individual clássico, sem característica transindividual. Por isso mesmo, o comando legal deve ser sempre interpretado de forma restritiva, literal, à luz da regra hermenêutica de que “onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir”.

Defendo ardorosamente a cultura dos precedentes, principalmente em um país continental como o Brasil, evitando a insegurança jurídica. Todavia, o caso paradigma há que guardar total imantação com o texto legal (“somente a lei cria, modifica ou extingui direitos” e “a ninguém é dado desconhecer a lei”), sob pena de tornar inútil o princípio da tripartição de Poderes.

Não é demais reiterar a inexistência, em todo o país, de condições estruturais, operacionais e funcionais para mais essa função vir a ser cometida à Infância, que atua com o prazo máximo de 45 dias para julgar internação provisória e manter a internação do adolescente infrator e 200 dias para decretação de perda de poder familiar e adoção. A interpretação extensiva do artigo 98, do ECA, acarretará uma superlotação de processos para tais varas, amoldadas a prazos exíguos, com consequências desastrosas na prestação jurisdicional para as crianças e adolescentes, contrariando a melhor prestação judicial em relação a essa parte hipossuficiente da sociedade, apregoada no artigo 227, da Constituição, e no artigo 4º do Estatuto da Criança.

O objetivo de diminuir feitos nas varas de Fazenda, por mais nobre, vai culminar em prejuízo às crianças, uma vez que o trabalho das unidades de Infância é bastante especializado. Enquanto isso, as unidades Fazendárias estão apetrechadas para fazer bloqueios de verbas do Poder Público e assegurar a imediata execução da ordem judicial. Em outros estados, há modelo de Vara Privativa de Saúde. Havendo condição, conveniência e oportunidade, seria o ideal. Não havendo, a matéria é fazendária. Destaque-se, por fim, que a decisão é vinculante em nosso estado, salvo se houver decisão vinculativa superveniente emanada do STF ou STJ.