A lei Federal nº 12.010/2009 de 03 de agosto de 2009 entrou em vigor noventa dias após sua publicação, em novembro do mesmo ano, mantendo/trazendo em seu bojo uma enorme polemica, respeitante à possibilidade ou não de se autorizar adoção conjunta em favor de parelhas homossexuais, pelo simples fato de haver se mantido silente sobre o tema.
Tendo participado ativamente do processo legislativo que resultou na lei mencionada, na qualidade de coordenador da Comissão Pró-Convivência Familiar e Comunitária de Frente Parlamentar Pela Adoção que elaborou o seu anteprojeto, além do fato de ser autor do primeiro livro no Brasil que abordou o tema (adoção para Homossexuais, Editora Juruá), por ocasião da redação do livro: ”Comentários à Lei Nacional da Adoção”, lançado pela mesma editora no final de 2009, tive oportunidade de novamente estudar o assunto, sendo o presente artigo uma síntese das opiniões contidas em ambas as obras.
De logo destaco que a razão de novamente haver tratado academicamente do mesmo tema decorreu quase que exclusivamente do fato de ter me defrontado com opiniões antagônicas comentando a nova redação dada ao artigo 42 e seu parágrafo segundo do ECA, conforme se verá adiante, além do que a minha leitura da mudança guardar um certo distanciamento das opiniões dos comentaristas autores de tais posicionamentos.
Cumpre destacar antecipadamente que quando em 2002 editei o primeiro livro mencionado, o tema era um verdadeiro tabu, resultando que fui louvado pela comunidade LGBT; inclusive recebendo prêmios por tal iniciativa.
Todavia, agora, ao defender um ponto de vista aparentemente contrário aos interesses desses cidadãos, quem sabe, alguns haverão de querer me crucificar.
Entretanto, agradar ou desagradar não pode ser base para uma opinião acadêmica isenta. Muito menos se a opinião for emitida por um julgador.
Registro que o meu pensamento ali externado não se baseou em qualquer momento sobre a orientação sexual do adotante. Para mim isto é um aspecto fora de questão.
A análise ali foi feita à luz dos direitos humanos. Do igual exercício de direito à cidadania.
Em apertada síntese, a minha análise tomou como ponto de partida as disposições constitucionais respeitantes à igualdade de direitos e vedação de discriminação em razão do sexo, da prevalência dos superiores interesses da criança, da falta de sustentação científica para o argumento de que os filhos de homossexuais tenderiam a ter a mesma orientação sexual, seja por imitação dos referenciais, seja pela suposta promiscuidade ou que a união de pessoas do mesmo sexo não constitui família.
A ressalva que apresentei direcionava-se exclusivamente para os casos em que os adotandos pudessem ser vitimas de constrangimento ou de atos atentatórios à sua dignidade, pois, de resto, o deferimento ou não deveria ocorrer em idênticas condições àquelas realizadas por casais heterossexuais.
Após a publicação daquele livro, algumas sentenças foram prolatadas deferindo a adoção de crianças em favor de ambos os integrantes da parelha homossexual.
As duas primeiras no Rio Grande do Sul, sendo que uma delas foi objeto de apelação, e mantida, por unanimidade, pelo Egrégio Tribunal de Justiça daquele estado. Ao que consta, a mesma decisão foi também recorrida, através de Recurso Especial, para o Superior Tribunal de Justiça, não se sabendo, ainda, o seu desfecho.
Seguiram-se decisões do juiz da infância e da juventude de Catanduva-SP, Recife-PE, Brasília-DF e Goiania-GO, sempre no mesmo sentido.
O acórdão do único caso recorrido, oriundo da 7ª Câmara Cível do TJ-RS, na Apelação Cível nº 70013801592- Bagé/RS, da relatoria do desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, de cujo julgamento também participou a Dês. Maria Berenice Dias e o Dês. Ricardo Raupp Ruschel tem o seguinte teor:
“APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO.CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO.POSSIBILIDADE – Reconhecida como entidade familiar merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que as crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que os liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art.227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova os saudáveis vínculos existentes entre as crianças a as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO.UNANIME.”
A partir de tais decisões (monocráticas e colegiada), diversas foram as opiniões emitidas no sentido da possibilidade de concessão das adoções em favor dos casais homossexuais, agora reavivadas com a vigência da Lei Nacional da Adoção.
Feitos estes breves balizamentos sobre o histórico recente do tema em comento, passemos a analisar o que dizia o texto original do ECA, em confronto com a atual redação, assim como as opostas posições surgidas após a publicação da nova lei.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em sua redação original de julho de 1990 no art. 42 e o seu §2º, dizia: podem adotar os maiores de vinte e um anos, independentemente do estado civil. § 2º A adoção por ambos os cônjuges ou concubinos poderá ser formalizada, desde que um deles tenha completado vinte e um anos de idade, comprovada a estabilidade da família.
Agora, com a lei nº 12.010/2009, o mesmo artigo tem o seguinte teor: Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil. § 2o Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família. (grifei!).
Em uma primeira leitura do caput e do § 2º do artigo 42 é fácil se chegar à conclusão de que praticamente nada se inovou em relação à velha redação, apenas fixando a questão da maioridade civil aos 18 anos, além da supressão do termo “concubinos”, substituído por “união estável”.
Esta, todavia, não tem sido a leitura de muitos profissionais que atuam na área, parecendo mesmo que para eles ocorreu uma verdadeira revolução com a nova redação, muito embora chegando a conclusões absolutamente antagônicas, senão vejamos:
Andréa Maciel Pachá, Enio Gentil Vieira Júnior e Francisco Oliveira Neto, ao comentarem este parágrafo pelo viés da questão da adoção por parelha homossexual, dizem:
O dispositivo reforça a opção do legislador brasileiro de não aceitar a adoção por pessoas do mesmo sexo figurando como pai e como mãe. A Constituição reconhece como união estável só aquela constituída por homem e mulher (art. 226, parágrafo 3º). Registre-se que existem decisões judiciais que superam esse entendimento e deferem adoções a pessoas em união homoafetiva.[1]
Em sentido contrário, Marcos Duarte, presidente do IBDFAM Ceará diz:
Embora não exista impedimento no substitutivo para a adoção por casais homoafetivos, o legislador perde a oportunidade de legalizar este tipo de união por mero preconceito. Ao permitir a adoção conjunta por adotantes que vivam em união estável, implicitamente há permissão para a adoção por parceiros homossexuais já que proliferam decisões em quase todos os estados brasileiros reconhecendo a união estável entre esses casais, tendo inclusive o Superior Tribunal de Justiça decidido no sentido de atribuir direito de meação a ex-companheiro homoafetivo. (grifei)[2]
O mesmo pensar tem o advogado Enézio de Deus, senão vejamos:
Assim, diante a atual ausência de lei federal a regulamentar os efeitos das uniões homossexuais no Brasil, autorizados(as) estarão os(as) magistrados(as) da Infância e da Juventude a continuarem se valendo da analogia como instrumento de integração legislativa (arts. 5º, da LICC e 126, do CPC), o que conduz à inevitável aplicação da legislação da união estável aos pleitos de pares do mesmo sexo, atribuindo-lhes todo o plexo de direitos familiares – inclusive, para efeito de adoção em conjunto de crianças e adolescentes.[3]
Declarando antecipadamente minha amizade e admiração pelos ilustres comentaristas Andréa e Francisco, meus companheiros no comitê gestor do Cadastro Nacional da Adoção – CNA, tenho como um pouco exagerado o comentário, pois não acredito que o fundamento para a rejeição de adoção em conjunto por casais formados por pessoas do mesmo sexo tenha sido minimamente influenciado por este dispositivo, o qual, como antes afirmei, apenas alterou a idade mínima para adotar de 21 para 18 anos e formulou pontual melhoria terminológica ao texto original. O mesmo penso em relação às 2 (duas) outras opiniões contrárias à dos mencionados magistrados.
Na minha visão, a questão é um pouco mais ampla, senão vejamos: O art.226, § 3º da Constituição da república considera como ENTIDADE FAMILIAR a união estável entre O HOMEM e a MULHER, sendo, portanto, cláusula específica.
De sua vez, o art. 3º, IV, da C.R., em cláusula genérica diz: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, SEXO, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação”.
Disso decorre que não há conflito intraconstitucional no que diz respeito à possibilidade de uma interpretação extensiva do conceito de união estável, validando-o para uniões entre pessoas do mesmo sexo, mas é patente que não há amparo constitucional para entender tais uniões como entidade familiar.
Portanto, em um primeiro olhar, chega-se à conclusão que se for considerado pelo intérprete da norma o conceito genérico (união estável) já não havia desde a redação original do ECA vedação à adoção para parelhas homoafetivas, razão pela qual, nessa linha interpretativa, as decisões judiciais referenciadas concederam a adoção para casais homossexuais.
E é exatamente por isso que a opinião de Marcos Duarte e Enézio de Deus, data maxima venia, é, por assim dizer, incompleta. Sendo perfeitamente compatível com a extensão do conceito de união estável entre pessoas do mesmo sexo presente na Constituição da República, por decorrência não há como negar dependência previdenciária, partilha de bens adquiridos na vida em comum, etc.
Todavia, se o ponto de partida para a análise considera o conceito específico (entidade familiar), a conclusão inexorável é a de que não há, ainda, base constitucional para o seu deferimento. Já que não é entidade familiar, ou seja, a primeira vista ter-se-ia que mudar o art.226 da Carta Política. Nem mesmo se faria necessário que se recorra ao conceito de sociedade conjugal (também formado por homem e mulher-§5º, art.226, C.R.).
Se o art. 227, § 5º da carta Magna diz que a adoção será assistida pelo poder público, NA FORMA DA LEI, e a lei (no caso, sem dúvidas, é o ECA) não prevê expressamente a possibilidade de adoção conjunta em favor de pessoas do mesmo sexo, não há como deferi-las.
Ao contrário, em se admitindo que o Código Civil também possa albergar normas relativas à adoção, como esta Lei nº 12.010/09 o faz, não há que se afastar pura e simplesmente a incidência do art. 1622, do Código Civil, como pretende Enézio de Deus no artigo antes referenciado.
A propósito o art. 1622, CC, assim reza: “Ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher ou se viverem em união estável.”Por outra parte, o Código Civil regula a união estável nos arts. 1723 a 1727, mas, repetindo a Carta Magna, art. 226, § 3º, só reconhece como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher.
Embora reconhecendo que a segunda alternativa de interpretação, de minha autoria, pelo menos em tese, pode causar danos emocionais e patrimoniais ao filho adotivo de apenas um dos integrantes da parelha homossexual, o fato é que ela é a tecnicamente mais adequada.
Ou seja, minha discordância com o conteúdo sociológico das sentenças que concederam adoções para parelhas homossexuais, ou com a opinião de Berenice Dias contida no artigo “o lar que não chegou” é nenhuma. Apenas os pontos de partida Constitucionais recrutados por elas nas sentenças e no opinativo estão, a meu ver, equivocados.
“Para não dizer que não falei das flores”, o lado bom do meu raciocínio é que leva à inafastável conclusão de que não precisa modificar a Constituição da República, com todos os problemas decorrentes do quorum especial. Basta que se mude a lei, o que, convenhamos, em tese, é bem mais fácil.
Por isso mesmo o projeto original tratava da não vedação de adoção em função de ORIENTAÇÃO SEXUAL, o que é muito diferente da mera menção a não discriminação em razão de sexo. A polêmica estaria encerrada.
O primeiro substitutivo da Dep.Tetê Bezerra ao texto original do Dep. João Matos foi extremamente explícito, quando dizia:”Art. 38 I. Qualquer pessoa maior de 18 anos pode adotar, obedecidos os requisitos específicos desta Lei.
Parágrafo Único Para adotar em conjunto, é indispensável:
I – Que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, hipótese em que será suficiente que um deles tenha completado 18 anos e comprovada a estabilidade da família;
II – Que haja comprovação da estabilidade da convivência, na hipótese de casal homoafetivo(grifei!).
Com isso, chamou à atenção das bancadas evangélicas que textualmente disseram que só votariam o projeto se houvesse a supressão total do dispositivo. Em nome dos interesses de tantas crianças institucionalizadas, o acordo foi fechado com a supressão; Ou seja, em linguagem popular, na busca do que lhes parecia ser o ótimo, perderam o bom.
Para estes comentaristas que invocam as decisões favoráveis às adoções conjuntas de pessoas do mesmo sexo, não é demais lembrar que só uma delas foi submetida a um tribunal estadual, pois, infelizmente, o Ministério Público que atuou nestas quase uma dezena de casos se posicionou mais ideologicamente do que como custos legis, não recorrendo das sentenças.
Acredito que não há como se vender ilusão ou prometer um “terreno no céu”. A essência do direito pretendido é boa, sempre assim defendi. Suas virtudes, todavia, não podem servir de lastro à destruição de todo o arcabouço constitucional.
As sentenças referidas não podem, de per si, ter o efeito extensivo pretendido pelos articulistas já mencionados.
A questão é que tais sentenças fizeram coisa julgada inter partes, sem efeitos erga omnes, resultando que não se sabe como os nossos tribunais superiores irão decidir quando se defrontarem com um caso concreto. Como se garantir segurança jurídica para os diversos outros casos de pessoas que querem regularizar situações fáticas, já ajuizadas ou não?
Como antes fiz referência, a decisão do TJ/RS antes mencionada foi objeto de um Recurso Especial perante o STJ, restando se aguardar o seu posicionamento para que a questão fique mais bem balizada.
Finalizando estes comentários trazidos a lume em razão da opinião dos ilustres autores mencionados, lembro que o principal papel de uma Constituição é servir de pacto político de uma determinada sociedade em um determinado momento histórico.
No meu livro “Adoção para Homossexuais”[4] consta uma pesquisa feita em 04(quatro) capitais brasileiras, segmentada, onde fica claro que ainda existe grande resistência da sociedade brasileira em relação à adoção para casais homossexuais, o que compromete a idéia do pacto político antes referenciado. É preciso que novas pesquisas, com maior rigor científico, sejam realizadas, para que se tenha certeza do momento adequado para implantar a medida.
REFERÊNCIAS
DEUS, Enézio de. Nova Lei da Adoção e Homoafetividade. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=533. Acesso em 27/10/2009.
DIAS, Maria Berenice. O Lar que não chegou. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=527Acesso em 27/10/2009.
DUARTE, Marcos. Nova Lei Nacional de Adoção: a perda de uma chance de fazer justiça. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=526. Acesso em 27/10/2009.
Figueiredo, Luiz Carlos de Barros – Adoção para Homossexuais. Juruá Editora, Curitiba: 2001.
Pachá, Andréa Maciel; Oliveira Neto, Francisco; Vieira Júnior, Enio Gentil – Novas Regras para a Adoção. A.M.B., Brasília: 2009.
[1]Pachá, Andréa Maciel; Oliveira Neto, Francisco; Vieira Júnior, Enio Gentil. Novas Regras para a Adoção. A.M.B., Brasília: 2009.
[2] DUARTE, Marcos. Nova Lei Nacional de Adoção: a perda de uma chance de fazer justiça. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=526. Acesso em 27/10/2009.
[3] DEUS, Enézio de. Nova Lei da Adoção e Homoafetividade. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=533. Acesso em 27/10/2009.
[4] FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção para Homossexuais. 1ª edição. Curitiba: Juruá Editora, 2001, p. 113 a 138.