PROMOÇÃO DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA

19-04-2009 Postado em Publicações por Luiz Carlos Figueirêdo

A priorização da convivência familiar e comunitária é uma das pedras basilares da chamada Doutrina da Proteção Integral, incorporada à Convenção Internacional dos direitos das crianças, da qual o Brasil é signatário juntamente com os mais importantes Países do Mundo.

O legislador constituinte brasileiro trouxe para a nossa Carta Magna os seus conceitos fundamentais, os quais foram complementarmente detalhados no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90).

Infelizmente, como tantas outras coisas no Brasil, o que se observa é um profundo hiato entre a vontade da Lei e a realidade. Qualquer pessoa que circule nas grandes cidades brasileiras, ou mesmo nas de médio porte, sem precisar do apoio de pesquisa cientifica, observará um sem número de Crianças e Adolescentes perambulando sem qualquer perspectiva de um futuro digno. Muitos deles, eufemisticamente chamados de “Meninos de rua” já não têm qualquer referência familiar; outros tantos conhecidos como “Meninos na rua” quase não têm mais laços familiares, que paulatinamente vão se afrouxando até resultar na 1a. situação.

A indisponibilidade de educação, saúde, profissionalização emprego, alimentação adequada, transporte, lazer, moradia, etc., e de todos os direitos mínimos da cidadania, por si só, consubstanciam situação de marginalidade (no sentido de que estão à margem do patamar mínimo de sobrevivência com dignidade), e, como tal, inegavelmente, induzem à prática da delinqüência e de atos anti-sociais (marginal no sentido penal do termo).

Não é preciso lembrar as causas primária deste quadro, como o modelo econômico centralizador e inadequado, a falta de uma política rural e urbana que gera incentivo ao êxodo rural, distorção regionais, falta de políticas básicas e de geração de emprego e renda, etc. – Não basta denunciar esta situação grotesca. É preciso conjugar o “verbo” com a “ação”, mesmo que consciente se esteja que a atuação se dará muito mais nos efeitos que nas causas (a propósito, veja-se o magnífico exemplo que o gigante Betinho vem dando à sociedade brasileira em sua campanha contra a fome e pela cidadania).

Dentro deste contexto, se propõe um programa amplo envolvendo os poderes constituídos, em diferentes níveis e esferas, e a sociedade civil organizada, de moldes e se garantir que a promoção da convivência familiar e comunitária não seja “letra morta da lei”, mas uma realidade em nosso País. Como se observará em alguns pontos da proposta, em Pernambuco, aquelas de responsabilidade direta do Judiciário já estão sendo implantadas ou em vias de implantação.

O primeiro e fundamental passo diz respeito à instalação e funcionamento de um serviço de busca à família.

Como é óbvio, implica em discernir casuisticamente a situação de cada uma das crianças/adolescentes encontradas nas ruas (existência ou não de parentes próximos; prática ou não de atos infracionais; uso ou não de drogas; escolaridade; experiência anterior de trabalho, etc.). Existindo a família, o passo seguinte será a sua localização, gerando um trabalho de aproximação e convencimento de retorno ao lar e fortalecimento dos vínculos familiares. Disso decorrerá, por certo, a necessidade do uso de equipamento comunitários básicos para suprir as necessidades detectadas, tanto as emergências quanto as mais perenes (Postos de saúde para tratamento de doenças; escolas para ensino regular; cursos profissionalizantes; tratamento de drogadictos; identificação de meios geradores de empregos e renda, ou, até mesmo, em ações que não constituem medidas protetivas específicas, como regularização da posse de terra, de documentação pessoal, etc.).

Sendo preponderante a causa econômica, e nem sempre sendo possível a colocação do adolescente ou seus familiares (mercado retraído e/ou baixa qualificação), farse-á indispensável a inclusão em programa comunitário ou oficial de auxilio (vide Arts. 23 e 101, IV, do Estatuto) – A inexistência ou insuficiente oferta deste tipo de serviço não deve servir para esmorecer o verdadeiro atuante nessa área. Ao contrário, deve motivá-lo à busca de organizar as comunidades e para cobrar das autoridades constituídas a sua disponibilidade. Pergunta crucial diz respeito a “quem seria o agente executor deste programa, que engloba tanto atividades operacionais como de articulação?”.

A titulo de exemplo, referencio que em Porto Alegre-RS, esta tarefa vem sendo executada, com enorme sucesso, pelo Poder Judiciário. Em Curitiba-PR, o denominado programa “SOS-Criança” é gerido pela justiça, com a participação direta da Prefeitura.

Sem deixar de reconhecer o mérito das Ações em ambas as cidades, em especial no caso de Porto Alegre, não acredito que seja essa boa alternativa, quando confrontada com a lógica gerencial do sistema macro constante do estatuto.

A Lei nº 8069/90 prevê a criação dos denominados Conselhos Tutelares, “encarregados pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta lei”.

No sistema legal anterior, tal tarefa era de competência da Justiça, Embora quase nunca exercida (some-se o poder inerente de julgar + o de executar + o de editar portarias de caráter geral, veja-se que a Justiça de menores queria ser, ao mesmo tempo, Judiciário, Executivo e legislativo). O fracasso do modelo e a convicção de que problemas sociais devem ser resolvidos na própria sociedade e que o papel do Judiciário é de equilibrar as divergências e decidir as pretensões resistidas levaram o legislador a incluir este novo colegiado no sistema gerencial do modelo.

Cientes das dificuldades de implantação, por contrariar tantos interesses estabelecidos, o legislador previu que enquanto não instalados suas atribuições fossem exercidas pela autoridade Judiciária. Lamentavelmente, na prática, a idéia de uma alternativa provisória pensada na lei tem servido de mais um obstáculo ao surgimento dos Conselhos Tutelares, pois enseja para alguns a manutenção do “STATUS QUO ANTE” e a conservação do Poder controlador. Dois bons exemplos não podem servir de paradigma de contraponto às centenas de casos em que o fracasso é patente.

A implantação dos Conselhos tutelares e a assunção por eles de todas as atribuições é marco importante no resgate da cidadania.

Os programas municipais e Estaduais com denominação de “SOS-Crianças” ou similar, as ações públicas ou não governamentais em medidas protetivas devem continuar, não autônomas e independentes como hoje, mas como linha auxiliar (espécie de Secretária Executiva dos Conselhos, quando forem instalados, ou do Judiciário enquanto tal não ocorrer). O sucesso das intervenções depende de uma política una e coerente com as necessidades de cada comunidade, que deve brotar do organismo encarregado de sua execução segundo a Lei.

O segundo passo diz respeito a um programa de manutenção de criança em abrigo.

Como é óbvio, o esforço do item anterior pode não resultar em êxito. Inexistência de familiares; sua não localização; ambiente familiar inadequado; incompatibilidades insuperáveis entre a criança/adolescente e a família sempre existirão, além daquelas vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, etc.. Para onde encaminha-los, enquanto não se acha uma solução definitiva para os seus casos, ou mesmo onde ficarão eles caso esta solução não seja encontrada?.

A alternativa de Lei é o abrigo.

Entretanto, é preciso se ter a consciência de que os abrigos configurados no Estatuto não podem mais continuar como os antigos “depósitos de menores”, governamentais ou não, encontrados em quase todas as cidades brasileiras.

Fazem parte de nova filosofia alguns conceitos básicos, como por exemplo: Abrigo deve ter características de provisoriedade e excepcionalidade, utilizável como forma de transição para colocação em família substituta; não pode funcionar como local de privação de liberdade (isto não quer dizer “porta aberta” e “liberou geral” como pensam alguns, pois, similarmente os nossos filhos estão abrigados nas nossas casas e se submetem, como pessoas em desenvolvimento, sem plena maturidade, às regras de convivência familiar, dentre as quais as de não se ausentar sem prévio acerto ou autorização. Apenas a lei não permite a contenção forçada e compulsória, sendo tarefa do educador convencer que a permanência é vantajosa para o abrigado); precisa ser previamente cadastrado; assegurar os direitos estabelecidos na lei e obedecer as regras específicas de funcionamento contidos no Estatuto (Além disso, seu dirigente se equipara para todos os efeitos legais ao guardião).

Tudo isso deve ser conjugado com a lógica da municipalização (e não prefeituralização) do atendimento. Dessa forma, no conjunto articulado de ações voltadas para a política de atendimento, deve se buscar paulatinamente o afastamento do Estado federado desta linha de atuação (não abertura de novas unidades para tal fim, por exemplo) e o fortalecimento de novas unidades; assunção das antigas com aporte financeiro de união e dos Estados, etc.). É importante o registro de que deve ser também abandonada a idéia dos grandes estabelecimentos que só geram promiscuidade e insuficiência da prestação dos serviços, para dizer o mínimo.

O terceiro passo diz respeito à busca de família substituta.

Sendo a convivência familiar um direito assegurado na Lei, e malogrando as tentativas para permanência na família natural, é vital para o sistema a existência de um vigoroso programa de colocação em família substituta, especialmente para os que se encontram abrigados em entidades de atendimento.

Disso decorre, em primeiro plano, o afastamento de conceitos arraigados, mas absolutamente incompatíveis, a saber: Adoção não pode ser encarado como ato de caridade; Adoção não vai resolver problema social de pobreza no País.

A adoção nada mais é do que uma fórmula legal para se dar uma família a quem não tem. Desta forma, a busca deve se dirigir para a melhor família para a melhor criança e vice-versa.

Isto implica na necessidade de um prévio cadastramento das crianças e dos pretendentes e na formulação de critérios objetivos que permitam identificar o melhor adotando para os melhores adotantes. Quanto maior a comarca, mais aperfeiçoado deve ser este sistema, não sendo aceitável que onde existem muitos candidatos ainda se utilize o injusto sistema da simples ordem de inscrição.

Nem sempre é possível aos Juízes disporem de equipes técnicas para fazerem as entrevistas, visitações, análises, acompanhamentos e emissão de pareceres. Neste particular, o apoio voluntário da sociedade civil, ou a participação de técnicos das prefeituras, etc., pode ser a alternativa viável.

No caso de Recife, encontra-se implantado um sistema informatizado, cujo nível de sofisticação é compatível com a realidade local. A Portaria conjunta nº 01/93 dos juízes de ambas as Varas da capital define criteriosamente as prioridades. A equipe técnica, embora diminuta, esta habilitada para a função – Não se concede Adoções para crianças cujos pais não foram previamente Destituídos do Pátrio Poder, nem para pessoas que não estejam cadastradas. Mesmo as exceções legais (adoção unilateral de filhos de companheiras/esposas; parentes próximos; guarda de fato de longo tempo, etc.) são submetidos a um cadastramento especial para evitar a burla.

Estas providências, além de assegurarem o critério justo de escolha, inibem a atuação de atravessadores e exploradores – Exatamente pela prévia decretação de perda de pátrio poder, a presença de advogado é facultativa, à falta de lide (pretensão resistida).

É básico também o entendimento de que se a Lei prevê 3 (três) formas de colocação em família substituta (Guarda, Tutela e Adoção), não parecendo ser lícito a imposição ao casal de apenas ter acesso à última das formas mencionadas. De um lado é comum que pessoas que apenas obtiveram Guarda ou Tutela voltem posteriormente para requererem a Adoção; De outro, inegavelmente é melhor que a criança fique no seio familiar na condição de guardada ou Tutelada, do que permanecer nas ruas ou em um abrigo. Mais uma vez vale aqui a competência e o profissionalismo para convencimento de que a Adoção e a solução mais completa.

Seja por razões sociais, culturais, econômica, climáticas, alimentares, religiosas etc., é indiscutível que a concessão deva priorizar o residente no município; não sendo possível, no Estado; na Região Geográfica; no Brasil e, por fim, em última instância, em Adoção Internacional.

Não é demais lembrar que a excepcionalidade de Adoção Internacional é matéria Constitucional e legal (Estatuto), também recomendada na normativa internacional (convenção da ONU) e nos Estatutos da Associação Internacional dos Juízes de Menores e de Família.

Quanto a este aspecto, apesar de restrição legal, o que sempre se observou foi não a exceção para o estrangeiro, mas, ao contrário, um certo favorecimento, especialmente quando se tratava de Crianças de tenra idade.

A utilização desbragada do sistema legal anterior (cumulação do verificatório simples + adoção), sem prévia destituição do Pátrio Poder, em uma interpretação meramente gramatical e apressada do Artigo 166 Parágrafo único do Estatuto (se esquecendo – SIC – dos Arts. 169 e 31) manteve as facilidades para os estrangeiros, com as mães se apresentando e dizendo que queriam entregar seus filhos aquele casal de outro País. Como se conheceram? Quais vantagens econômica receberam as mães e os intermediários?

Fazendo cessar esta aberração, em Pernambuco foi criada em 04/93 pelo Provimento nº 03/93 a Comissão Estadual Judiciária de Adoção, a CEJA-PE, instalada em 15 de Julho de 1993, da qual tenho a honra de ser seu primeiro Presidente.

Nenhum estrangeiro pode mais adotar em nosso Estado sem estar munido do Laudo de Habilitação da CEJA-PE.

Os brasileiros são cadastrados facultativamente, fato que serve para realmente se aplicar a ordem de prioridade antes aludida. (existência de pretendentes em Comarca distinta daquela onde a criança encontra-se disponível).

As Adoções se fazem apenas em favor dos estrangeiros habilitados, após exaustiva análise, e para crianças/adolescentes cadastradas.

Árduo vem sendo o trabalho, especialmente na 1a. fase, pois o Provimento assegurou o direito adquirido aos estrangeiros que já estavam cadastrados nas Comarcas, impedindo nova análise pela equipe técnica da CEJA-PE. O grau de exigências colocadas nos novos pedidos é um sinal vigoroso de que estes cadastramentos antigos, no mais das vezes, deixavam a desejar. Entretanto, agora no início de 1994, praticamente já não existem na lista de espera candidatos que haviam sido cadastrados nas Comarcas do interior, e, no caso da Capital, desde 1987, a análise para deferimento das inscrições já era criteriosa, de sorte que são mínimos os riscos de falha para estes casos.

As portas para os traficantes de crianças foram fechadas, mas a simples implantação de tais Comissões não é, por si só, assecuratória de banimento de irregularidades. É preciso a constante vigilância para se assegurar que não existem “válvulas de escape” para irregularidades. Notícias se tem de que em alguns Estados de federação a Comissão apenas criou uma aparência de legalidade, quando intermediários circulam pelas Comarcas munidos de Laudo de Habilitação (o que lhes dá uma força adicional), identificando criança especifica para casal certo. Em outro caso, o grau de interferência da CEJA é tão forte, que invade o campo do Juízo natural, eivado, assim, de inconstitucionalidade. De outra parte, cabe o registro que no Rio Grande do Sul, mesmo não existindo formalmente uma CEJA como preconizada no Art. 52 do Estatuto, um colegiado formado por Juizes tem cumprido satisfatoriamente este papel.

O sistema informatizado Pernambucano, fruto de análise dos erros e acertos das outras experiências, tem funcionando a contento, interligado ao sistema de colocação em família substituta da Capital, e recebendo informações mensais dos Juizes das Comarcas do interior.

A CEJA-PE também cadastra as entidades nacionais e internacionais que trabalham com Adoção, e a experiência tem demostrado um maior controle de qualidade nas Adoções intermediadas por Instituições sérias previamente cadastradas. Cabe referenciar que a Pré-convenção da ONU já indica aos Países signatários que apenas defiram Adoções internacionais para casos intermediados por Instituições regularmente inscritas em seus Países de origem.

Todo esse esforço no sentido de que a vontade de Lei de priorizar as permanência no Brasil deve ser concomitante a uma campanha de divulgação na mídia para estimular os brasileiros a se inscreverem como pretendentes a Adoção (tal foi feito em Olinda-PE, nos anos de 1987/1988, com excelentes resultados).

Além disso, Pernambuco, pelo seu Egrégio Tribunal de Justiça, encaminhou à Assembléia Legislativa um Projeto de Lei criando Varas Regionalizadas da Infância e da Juventude, seguindo os passos do Rio Grande do Sul, que, com certeza, pela especialização dos Magistrados, Promotores, técnicos e serventuários de Justiça, facilitarão as prestações Jurisdicional na área da Infância e da Juventude como um todo e na questão especifica de colocação em família substituta.

Finalmente, fora do âmbito do Judiciário, é importante o registro de êxito de programas denominados de “casas-lares”, nas quais devem prioritariamente ser incluídas crianças-adolescentes em vias de colocação em família substituta, pois a vivência em um ambiente familiar ou com aparência de família, serve maravilhosamente como estágio preparatório para o seu futuro estágio de Vida.

Luiz Carlos de Barros Figueirêdo
Juiz da 2a. Vara da Infância e da Juventude – Recife-PE

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