2/3 (dois terços) da população brasileira reside hoje nas cidades, dos quais a grande maioria concentrada em núcleos urbanos de grande e médio porte e nas chamadas regiões metropolitanas. Tal fato representa exatamente a inversão dos percentuais encontrados no censo de 1950 (quando o país era predominantemente rural). Este fenômeno de urbanização acelerada nos países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento tem se dado menos por atrativos reais nas cidades (abundância de emprego, escolas, saúdem habitação, lazer, etc) e muito mais pela ausência de uma política agrária/fundiária coerente que possibilite a fixação do homem no campo, sendo a estrutura atual fomentadora do êxodo rural.
Embora através de pesquisas e levantamentos estatísticos saiba-se ser reduzidíssimo o número de pessoas que deixam o campo diretamente para as grandes metrópoles (normalmente cumprem, por assim dizer, estágios em cidades pequenas, depois de médio porte, e assim sucessivamente), o Governo Central e os Estados Federados continuam investindo os parcos recursos, assim como incentivando a iniciativa privada a investir nos efeitos, não nas causas. Órgãos Federais ligados a esta problemática, como, por exemplo, o CNDU, embora tradicionalmente dirigidos por pessoas competentes e honestas, pouco têm conseguido de prático, posto que, como visto, por mais paradoxal que aparente, o fenômeno da inchação das grandes cidades têm suas causas alimentadoras e retro-alimentadoras fora do “SISTEMA URBANO”, onde não se atua ou quando se tenta fazer alguma coisa, quase sempre se dá de maneira desastrosa.
Aproveitando-se desse caos, pessoas inescrupulosas passaram a retalhar as terras das periferias de todas as grandes cidades em micro lotes, sem as mínimas condições de urbanização futura (ruas estreitas impossibilitando o tráfego de veículos, a chegada de iluminação pública, água encanada, gás encanado, telefonia, declividades excessivas, etc). A regra era o máximo de lucro no mínimo espaço de tempo possível. Tudo isto era feito às escancarras, já que a legislação federal que tratava dos loteamentos – DL nº 58/37, preocupava-se primordialmente com a venda de lotes a prestação e as legislações urbanísticas dos municípios ou eram falhas, às vezes inexistiam, ou, se de boa qualidade, eram superadas na base do “jeitinho brasileiro”.
Neste contexto, por iniciativas do ex-Senador Paulista Otto Lehhman, surgiu a lei de parcelamento de solo urbano (Lei federal nº 6.766 de 12.12.79), que representa inegável avanço no trato da questão urbana no País. Além do aspecto urbanístico propriamente dito, cuida ela de questões cíveis, aspectos de registro público, e, acima de tudo, contempla situações ensejadoras de apenação com privação de liberdade.
Decorridos quase 6 (seis) anos de sua vigência sem qualquer alteração do seu texto original, faz-se necessário avalia-la sem os emocionalismos e paixões das primeiras horas, vendo-se seus aspectos positivos e os que precisam de reformulação, inclusive à luz de construções doutrinárias e jurisprudenciais.
Sobre a relevância desta necessidade de apreciação crítica da Lei nº 6.766/79, veja-se como complexo é o nosso País que, antes de avaliar a legislação existente, já encaminha ao Congresso Nacional o polêmico projeto da denominada “Lei de Desenvolvimento Urbano”, criando novas figuras na legislação pátria, tais como: direito de preempção, direito de superfície, imposição de edificar, amplia a legitimidade de partes para ingressar em Juízo, etc.
Antes da análise propriamente dita, peço desculpas aos nobres colegas pela necessidade de ter feito este rápido histórico, assim como as referências de natureza urbanística que se seguirão, posto que, embora sabedor de que, pela própria natureza das funções por nós exercidas, interessamo-nos mais pela discussão de aspectos legais substantivos e adjetivos, entendo impossível a exata compreensão da problemática sem estas considerações gerais que englobam a natureza e as razões da edição da Lei.
DA NECESSIDADE DE AVALIAÇÃO DA LEI
Observando-se as considerações anteriores, espero que tenha ficado claro que a minha principal hipótese de trabalho diz respeito à necessidade de ser efetuada uma avaliação crítica da Lei, vendo-se seus aspectos positivos e negativos em seus ângulos urbanísticos, cíveis e penais, como fonte alimentadora de uma futura adequação da mencionada Lei nº 6.766/79.
Por questão de justiça devo acrescer que, recentemente, a CNDU encaminhou questionário às Prefeituras e Órgãos direta ou indiretamente vinculados ao problema, só que não foram divulgados os resultados de tal pesquisa e muito menos qual a posição daquele órgão frente aos problemas levantados.
Por razões didáticas e metodológicas, iniciarei minha apreciação pelas grandes questões que atormentaram e ainda atormentam (algumas delas) os aplicadores da Lei desde os primórdios de sua vigência.
DAS QUESTÕES JURÍDICAS
A) Pode a União legislar em matéria urbanística?
A inconstitucionalidade da lei como um todo foi a primeira grande dúvida surgida com o seu aparecimento. As competências da União, como se sabe, são explícitas na magna carta, e nela não se encontra inserida tal matéria, levando a que alguns defendessem ardorosamente a tese de que tal assunto é e competência exclusiva municipal (peculiar interesse).
Nesta esteira, grandes estudiosos, como, por exemplo, EROS ROBERTO GRAU, passaram a construir que a constitucionalidade da Lei ocorre por estar ela a tratar de Direito Civil, Penal, Registros Públicos e normas de defesa e proteção da saúde (art. 8º, XVII, “b”, “e” e “c” da CF vigente). Diz ele taxativamente, In “LOTEAMENTO EM ÁREA METROPOLITANA”: não há como sustentar nela se disponha sobre matéria de urbanismo, visto que não detém a União competência para fazê-lo. Está na vigência da EC 1/69, é integrada na competência municipal”.
Outros, entretanto, como José Afonso da Silva, Miguel Reale e Hely Lopes Meirelles, com base na teoria dos “direitos implícitos” opinam pela competência da União sobre normas gerais de desenvolvimento urbano, sendo que o último deles defende, também, a inclusão da competência da União na CF.
Embora ainda incipiente, a jurisprudência tem dado guarida a esta última corrente, reconhecendo que os 3 (três) níveis de governo têm competência em matéria urbanística.
B) Pode a União legislar sobre procedimentos administrativos a serem seguidos pelas Prefeituras e pelos loteadores?
Por mais louváveis que sejam os objetivos colimados, por mais completa que seja a listagem das exigências a serem satisfeitas pelo loteador; por melhor que seja do ponto de vista da moralidade administrativa que o poder público indique seus planos para a área a ser loteada e tenham prazo certo de validade as diretrizes indicadas, a resposta necessariamente há de ser NÃO. É flagrante a invasão de peculiar interesse municipal, não se trata de normas gerais de urbanismo, sendo uniforme a doutrina neste sentido. Profissionais de planejamento de órgãos governamentais (Secretaria do Estado de Negócios Metropolitanos; Emplasa; CEPAM, etc.) defendem tal dispositivo ardentemente pelos seus efeitos práticos, mas passando ao largo da questão constitucional.
C) Pode a União impor requisitos mínimos urbanísticos aos loteamentos ou vedar o parcelamento do solo em determinadas situações?
A resposta é complexa. Casos há que sim e outros que não. Por exemplo: 1) Proibir o parcelamento do solo em terrenos aterrados com material nocivo, ou em áreas de preservação ecológica são hipóteses de competência explícita da União da Constituição (defesa e proteção à saúde), sendo a resposta SIM. 2) Exigir harmonia das vias do loteamento com as adjacentes; reservar área “non aedificandi” ao longo das faixas de domínio de rodovia e ferrovias são “normas gerais de urbanismo”, visam a uma estrutura lógica da malha urbana do país, compatível com um futuro plano nacional de desenvolvimento urbano, pelo qual a resposta também é SIM. 3) Exigir área mínima e frente mínima de lote, percentuais de declividade, corresponde violação ao peculiar interesse do município, razão pela qual dizemos NÃO pela flagrante inconstitucionalidade de tais dispositivos (no mesmo sentido 2 (dois) acórdãos do Conselho Superior da Magistratura- SP – Ap. Civ. 2.641-0 e AP Civ. 2682-0) prevalece a norma local.
D) É constitucional o dispositivo que exige a prévia anuência do Estado em loteamentos em determinadas situações ou localização?
Pelas razões apontadas na questão da letra “a”, à luz da teoria dos “direitos implícitos” e utilizando-se de uma interpretação extensiva, acarretando em competência supletiva do Estado, a resposta há que ser positiva – O erro técnico, parece, encontra-se em se dizer que o Estado deve legislar por decreto (afronta ao Princípio Constitucional de que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da Lei). No caso das Regiões Metropolitanas, veja-se também que a competência Estadual para legislar sobre uso do solo urbano decorre ainda da lei, o ato administrativo que anui ou não ao parcelamento perde as características de discricionariedade e envereda pelo campo do arbítrio. Melhor seria que na ausência da Lei, houvesse obrigatoriedade da simples AUDIÊNCIA, e não anuência, sem, portanto, características de ato vinculado, dando caráter de mera sugestão (acatáveis ou não pelo município) às posições defendidas pelo Estado.
Nos tribunais, tal matéria já teve oportunidade de ser apreciada, tendo o Egrégio TJ MG decidido pela obrigatoriedade da prévia anuência (AP. Cível nº 51717).
DOS ASPECTOS POSITIVOS E NEGATIVOS DA LEI
Entendo bastante meritórios os objetivos colimados na legislação, aduzindo ainda que, na prática, seus efeitos positivos superaram de muito os negativos, justificando-se plenamente a sua existência no ordenamento jurídico.
Dentre as últimas (negativas) cabe destacar, além das inconstitucionalidades, pela invasão dos limites de competência de cada esfera do governo, a tecnicamente denominada “simetria legal”, vício de difícil solução em um País continental como o nosso. O fato é que o tratamento igualitário, em regiões distintas e em municípios de características as mais díspares possíveis, antes de representar um respeito ao princípio constitucional da isonomia, indica a sua violação, por tratar igualmente os desiguais. Óbvio é que não defendo centenas de critérios, mas entendo inaceitável a existência de apenas 2 (dois) tipos de município, pelo único e exclusivo critério da população, para fins de maiores ou menores exigências ao parcelamento do solo.
No que tange às inovações positivas, cabe destacar as principais delas, a saber:
1) Edição de uma lei compatível com uma política nacional de urbanismo;
2) Possibilidade de o Estado membro impedir o parcelamento quando danoso a municípios vizinhos, e opinar sobre a transformação do solo rural em urbano, em determinadas circunstâncias;
3) Restringir a alteração de destinação dos espaços de uso comum;
4) Minimizar os riscos de danos a terceiros, pela necessidade do loteador provar integridade moral e estado de solvência;
5) Previsão de restrições urbanísticas convencionais;
6) Vedação da venda ou promessa de venda de parcelamento do solo não registrado;
7) Possibilidade do Poder Público promover a regularização do parcelamento, ressarcindo-se das despesas efetuadas;
8) Instituição de responsabilidade solidária das pessoas físicas ou jurídicas que integrem grupo econômico empreendedor de loteamento;
9) Criação de um mecanismo próprio para suscitamento de dúvida (semelhante ao da Lei de Registros Públicos);
10) Criação de figuras penais, com rígida apenação aos infratores dos dispositivos da lei (Sobre tal aspecto, veja-se que a Câmara Especial do TJ-SP, no Habeas Corpus nº 12422-3, denegou ordem para trancar ação penal contra loteadores que colocaram à venda lotes de loteamento não registrado, embora à época do Acórdão, o mesmo já estivesse regularizado, entendendo haver justa causa para a ação e que o crime foi cometido em tese).
DAS QUESTÕES COTIDIANAS
Restam ainda rápidas considerações sobre pequenas dúvidas do dia-a-dia que continuam perdurando, como por exemplo:
a) É obrigatória a participação do MP (pena de nulidade) nos processos de impugnação e suscitamento de dúvida, havendo decisão que, embora com restrições, lhe assegurou a posição de impugnante (9ª Câmara Cível TJ-SP Ap. Civ. nº. 54265-2).
b) A notificação judicial do promitente comprador do loteamento, para constituí-lo em mora, ou do credor, para os mesmos fins, é ineficaz, por ser forma não prescrita em Lei.
c) O Município não pode impedir a implantação dos denominados “condomínios horizontais”, posto que é matéria de direito civil, de competência da União, mas pode sujeita-los às normas urbanísticas locais;
d) Desdobro não é desdobramento (distinção entre o previsto no art. 2º, §2º da Lei 6766/79 com o referido no art. 167, II, nº 4 da Lei nº 6015/73) – Acórdão do Conselho Superior da Magistratura – SP. Ap. cível nº 2.219-0/Ap. cível nº 849-0.
Veja-se aí que a doutrina e a jurisprudência têm entendido, sabiamente, que, no desdobro há simples averbação e não registro, todavia exigindo lotes resultantes com os padrões mínimos da lei de uso do solo. Quando se trata de unidades autonomamente tributadas pelo município, com situação de fato anterior a 12.79, é majoritário o entendimento de que não são exigíveis dos resultantes, os padrões urbanísticos de tamanho de lote e frente de lote (a lei não prejudica o ato jurídico perfeito e o direito adquirido).
e) Os denominados “loteamentos irregulares e/ou clandestinos”, implantados antes de dezembro de 1979 se sujeitam, para fins de regularização, exclusivamente à Lei dos Registro Públicos e à norma urbanística local da época, não se aplicando os dispositivos da Lei nº 6.766/79 (Princípio da irretroatividade da lei).
Havendo dúvidas quanto à época de implantação (aglomerados que se formaram em períodos diversos), e tendo existido mo interregno diversas leis municipais, sem que se possa precisar qual a época de implantação de cada “setor ou fase do loteamento, deve ser aplicada aquela que for mais benigna ao adquirente”. Neste sentido Gilberto Passos de Freitas IN “O Ministério Público na Regularização de Loteamentos” e Diógenes Gasparim IN “Regularização de Loteamentos e Desmembramentos”. A mesma posição é abraçada pelo estudioso do assunto Toshio Mukai, que, em artigo constante do boletim do IRIB nº 98, fez menção a decisões judiciais sobe o assunto, a saber: Conselho Superior da Magistratura – SP Ap. cível nº 1702 – Capital; Ap. cível nº 752-0 – Sumaré e Ap. cível nº 1774-0 – Nova Granada.
São estas, meus amigos, as minhas observações sobre a lei nº 6.766/79, analisando-a dentro dos meus parcíssimos conhecimentos sobre o assunto.Agradeço a paciência dos que me ouviram e coloco-me ao inteiro dispor para responder as questões que me forem colocadas e estiverem ao meu alcance responde-las.
Muito obrigado!
Luiz Carlos de Barros Figueirêdo
(*) Palestra proferida em 1985, na cidade de Campina Grande-PB, em Seminário promovido pelas associações de Magistrados da Paraiba e de Pernambuco.