Embora o ECA já esteja em vigor há tantos anos, freqüentemente sou indagado sobre como proceder em relação às recusas dos oficiais do registro civil de realizarem averbações de adoções feitas por escritura pública (contratual, do antigo Código civil), ou Adoção simples do revogado Código de Menores.
Tenho orientado para que se promova a “suscitação de dúvidas” prevista na Lei dos Registros Públicos, assim como fornecido cópia de sentença de minha lavra, confirmada, abaixo transcrita, na que, por óbvio, foram omitidos os nomes e outras informações capazes de identificar as partes envolvidas, para subsidiar os argumentos a serem deduzidos no incidente.
Embora datada de outubro de 1991, seu conteúdo continua atual, pois agora as consultas já não são feitas pelos adotantes, mas pelos adotados ou parentes próximos, quase sempre envolvendo direitos sucessórios.
Processo n.º 706/91 – 2ª Zona Judiciária – registro civil de Santo Antonio.
Vistos, etc…
Fulano e Fulana de tal, devidamente qualificados, ingressaram neste juízo com pedido de averbação de Escritura Pública de Adoção “Lavrada anteriormente à vigência do Estatuto da Criança”, através da qual adotaram a criança Beltrana, que no ato da lavratura da escritura foi representado por sua genitora, correndo o pedido pelo cartório de registro civil nos termos da Lei n.º 6015/73.
Aberto vistas ao M.P, este se manifestou contrariamente ao pedido, face à norma da Lei 8069/90, art.47, onde se estabelece que a adoção de criança e adolescente se faz pela via judicial; que embora lavrada antes da vigência da Lei não se procedeu a averbação em prazo hábil, impossibilitando sua feitura agora para que o ato jurídico se concretize plenamente.
Relatei e decido:
Este é, sem dúvidas, um caso de aparente simplicidade, mas que encerra inúmeras nuances e peculiaridades a serem analisadas. Acredito que a existência de uma previsão específica nas “disposições finais e transitórias” da Lei 8069/90 estabelecendo um prazo limite para averbação de Escrituras Públicas feitas anteriormente à sua vigência poderia ter sido uma boa solução para o problema. Entretanto, ante a inexistência de tal norma, passemos a uma análise do caso sub judice, interpretando as situações concretas sob diversos ângulos de enfoque, a saber:
I – O Parecer do M.P. – A partir do momento em que se posiciona como “atos jurídicos vinculados” – A manifestação de vontade das partes consubstanciada na escritura e a sua posterior averbação no registro competente – O Parecer da Promotoria é perfeito. A alteração legal que agora impede a chamada “Adoção Contratual” de menores de 18 anos seria obstáculo intransponível, pois só a partir da vigência de nova norma estaria sendo praticado ato essencial e indispensável para a validade de Adoção por Escritura pública;
II- Os efeitos da averbação – A leitura dos artigos 100 § 1º, 101, caput e 102, 3º, da Lei 6.015/73 permite inferir, sem qualquer sombra de dúvidas, que a finalidade da averbação da escritura de adoção é que a partir de tal ocasião passa ela a produzir efeitos em relação terceiros. Ou, em outras palavras, em relação às partes outorgantes e outorgados da escritura os seus efeitos são imediatos.
De tal constatação decorre o óbvio questionamento sobre se é legítimo se exigir que as mesmas partes que já manifestaram suas vontades – que os efeitos da escritura incidem sobre eles pela simples lavratura e cujas vontades pode ser tida como irrevogável, a teor da nova Lei – se submetam a um processo judicial de adoção na Vara Privativa da Infância e da Juventude (art. 148, III, E.C.A), mormente quando se sabe do acúmulo de processos na mesma e na demora que fatalmente ocorrerá até a decisão final.
Embora reconheça que estou raciocinando pelo absurdo, chego até a imaginar hipótese de que, em um determinado Juizado onde os cadastros de pretendentes à adoção e crianças e adolescentes adotáveis estejam funcionando normalmente, apareça alguém a dizer que o adotante não se encontra cadastrado e ainda que o faça estará no final da lista de espera e, como tal, a criança seria entregue a outros candidatos;
III – Ato Jurídico Perfeito. A C.F. art. 5º, XXXVI, assegura que “a Lei não prejudicará o direito adquirido, o ATO JURÍDICO PERFEITO e a coisa julgada (grifei!).
Tal preceito já se encontrava contemplado no art. 6º da L.I.C.C, sendo que o parágrafo primeiro deste artigo esclarece “Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a Lei vigente ao tempo em que se efetuou”.
Como dantes se buscou demonstrar, em relação às partes outorgante e outorgada, na Escritura de Adoção o ato jurídico encontra-se inteiramente consumado com a simples lavratura da escritura pública, donde o ordenamento jurídico preserva e protege;
IV – DA FINALIDADE DA LEI – Diz o art. 5 º da Lei de Introdução ao Código Civil: “Na aplicação da Lei, o Juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. O Estatuto da Criança e do Adolescente, dentro da doutrina de proteção integral, expandiu o alcance de tal norma através da redação emprestada ao seu art. 6º: “ Na interpretação desta Lei, levar-se-ão em conta os fins a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.”
Data máxima vênia, entendo que no caso concreto jamais tais conceitos podem ser obtidos com o indeferimento do pedido, fato que, ao contrário, viria totalmente de encontro aos interesses da criança;
V- DA SUPOSTA FACILIDADE DE BURLA – É possível se imaginar que existam pessoas que concordem com os argumentos até então expendidos, mas que, por excesso de zelo ou cautela, estejam a pensar que a sua prática poderá gerar um sem número de burlas à Lei, mediante a prática de se fazer Adoções por Escritura Pública de crianças e adolescentes após a vigência da Lei, mas destacando-se como se tivessem ocorrido antes de tal momento. Independentemente do fato de que tal postura nivela por baixo e coloca na vala comum dos malfeitores e transgressores da Lei pessoas sérias que trabalham na escrivanias e tabelionatos, além do que tal fato é tipificado como crime e punido rigorosamente no Código Penal, – falsidade ideológica em documento público -, penso que as próprias exigências contempladas na Lei dos Registros Públicos, de “ Per si”, impedem tal ocorrência. Os que já tiveram a mínima experiência cartorária sabem que os livros para escritura pública, mesmo nas mais remotas comarcas, recebem novos registros quase que diariamente; tais livros são abertos e encerrados pelo juiz diretor do fôro, não havendo como deixar “folhas em branco” para preenchimento posterior; já no Registro Civil o oficial terá que fazer a averbação no livro de nascimento e anotações do art. 100 da Lei 6.015/73; os livros são identificados por letra e número com uma quantidade exata de folhas – 300 fls., e todas as rotinas e penalidades estão previstas na Lei.
Vale dizer, os riscos são reduzidíssimos, bem inferiores, até, aos existentes em outros atos jurídicos para os quais não se observa tanta cautela.
É um fato que parcela da humanidade usa sua inteligência para o mal e que é impossível se dizer que nestes casos também não ocorra que alguns tentem fraudar. Para tais casos patológicos, resta apenas a eterna vigilância recomendada a todos os atos e sanções rigorosas da Lei Penal;
VI – DA VIA INADEQUADA – É provável, também, a existência de pessoas que concordam com tudo dantes afirmado, mas insistam que a via procedimental da Lei de Registros Públicos, com pedido sem assinatura de advogado e com tramitação ocorrendo no próprio cartório do Registro Civil, seja inaplicável. Como tal, caberia aos requerentes ajuizar ação pelo rito dos procedimentos especiais de jurisdição voluntária (art. 1103, CPC), e só após o parecer da Promotoria no processo regular o juiz prolataria a sentença com os fundamentos anteriores.
Indago: como justificar às partes os novos gastos com custas e advogados?; como se pregar na rua um discurso bonito a favor da adoção e, ao mesmo tempo, se endossar tanta burocracia?: como se convencer a quem quer que seja que embora em um ou outro caso o desiderato seja o mesmo, ainda assim precisaria de um novo “processo”?
Ora, segundo o art. 244 do CPC, “quando a Lei prescreve determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade”.
Entendo que, se verificado todos os argumentos da finalidade do ato antes apontados, impõe-se o entendimento da possibilidade de deferimento nestes autos;
VII – DA OBRIGAÇÃ DE DECIDIR – O art. 4º da L.I.C.C. disciplina que “Quando a Lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”. De sua parte, o Código de Processo Civil, em seu artigo 126 estabelece que “O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna e obscuridade de Lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”. Ainda o CPC, no art. 131, contempla que “o juiz apreciará livremente a prova, atendendo os fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegado pelas partes; mas deverá indicar, na sentença os motivos que lhe formaram o convencimento”.
Quero crer, salvo melhor juízo, que, à falta de norma expressa sobre o caso “sub-judice”, e diante da constatação de que a interpretação meramente gramatical da disposição que obriga a Adoção ser feita pela via judicial surtiria efeito altamente pernicioso aos interesses da criança, o que foi feito “in casu” foi a conjuminação dos preceitos retrotranscritos, de moldes a que o “Estado – Juiz” viesse a decidir a questão da forma mais justa, sem ferir direito de terceiros ou qualquer norma vigente.
Ante tais fundamentos, com arrimo nos arts. 5º, XXXVI da C.F., 4º, 5º e 6º caput e parágrafo 1º da Lei de Introdução ao Código Civil; 131, 244, 269, I, 1103 e seg. do CPC; art. 6 º da Lei 8069/90 C/C art. 102, 3º da Lei nº 6015/79, julgo procedente o pedido e, via de conseqüência, mando ao oficial do Registro Cível de Santo Antônio 2 ª Zona Judiciária desta Comarca, que à margem de Nascimento de BELTRANO, lavrada no livro xxx fls. nº xxx, sob o nº xxxx, Promova-se a averbação da Adoção no forma requerida.
Custas “Ex-lege”, já satisfeitas.
P.R.I.
Recife, 14 de outubro de 1991.
Juiz da 3ª Vara de Família
e Registro Civil.
a) Luiz Carlos de Barros Figueiredo.