Sétima Câmara Cível
Agravo de Instrumento nº 134674-7 – Recife (5ª Vara da Fazenda Pública)
Agravante : Estado de Pernambuco
Agravado : Ministério Público do Estado de Pernambuco
Relator : Des. Luiz Carlos de Barros Figueirêdo
VOTO DE MÉRITO
À primeira vista, seduz a solução mais confortável, qual seja: lançar a presente causa à vala comum da doutrina e jurisprudência impeditivas da intromissão do Judiciário no chamado mérito administrativo, isto é, no juízo de conveniência e oportunidade que o agente público competente tece acerca da necessidade e da pertinência de encetar um dado ato administrativo.
Somente a partir de um olhar cauto e reflexivo, consegue-se dispensar ao caso em análise o tratamento que sua singularidade reclama. Não restam dúvidas de que a Administração, por meio de seu aparelho tecnoburocrático, é que tem condições de aferir a viabilidade da prática de um dado ato, bem como do proveito auferível de sua execução. Essa constatação se converte em verdadeiro axioma quando se trata do setor de pessoal: é o ente administrativo, porquanto demandante dos serviços, quem tem a potestade de ponderar sua necessidade de força de trabalho, como já visto; no cotidiano da atividade administrativa é que se verificará a suficiência ou não dos servidores investidos em funções públicas.
De outra mão, como o Direito Financeiro exige a anterioridade de Lei autorizadora de aumento das despesas públicas, as quais terão suas causas previamente constatadas e reconhecidas pelo agente a cujo cargo esteja o ordenamento dos gastos, a cujo cargo fica a apuração do melhor momento para realização de concurso para seleção de novos servidores.
Convém, entretanto, reconhecer uma particularidade no caso em apreço: a Ação Civil Pública em comento não teve em vista o simples desiderato de compelir o Estado à contratação de mais servidores efetivos. Não se trata de um singelo pedido de obrigação de fazer. Antes de tudo, prestou-se a ação constitucional a torpedear uma prática difundida no seio da Secretaria de Educação já há mais de década, flagrantemente inconstitucional: a contratação de professores em caráter temporário para desempenho de funções diuturnas e de permanente necessidade. São atividades contínuas, que, em vista disto, deveriam ser garantidas pela contratação de servidores concursados e efetivos – primeiramente, em homenagem ao princípio da continuidade do serviço público, que não pode sucumbir em face do exaurimento dos contratos temporários e da espera por nova seleção (o que, lastimavelmente, tem se verificado diuturnamente em nossa rede pública de ensino, com turmas enfrentando a carência de professores por meses a fio, em detrimento do calendário letivo e da própria qualidade da instrução, comprometida pela premência dos professores que tenham de repor aulas perdidas em exíguo período); ainda, repreensível a “perene temporariedade” dos contratos de professores por ofender o dogma constitucional do concurso público para acesso às funções de cunho permanente (ninguém pode pôr em dúvida que a demanda por docentes é contínua). Nesse tocante, impera salientar que as seleções públicas para contratos em regime temporário são meramente toleradas pela Norma Ápice (CF, art, 37, IX):
“lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público” (grifos nossos).
São suportadas as ditas contratações temporárias, por óbvio, na qualidade de exceções, desde que correlatas, como visto, com necessidade temporária de interesse público excepcional. Deve-se, pois, nortear a contratação temporária pela provisoriedade da demanda, tendo em vista uma situação insólita. Exclusivamente quando estejam reunidos ambos os critérios é que se confere à Administração a faculdade de contratação em regime temporário: as normas de exceção devem ser interpretadas restritivamente, eis o que prega a boa hermenêutica.
Tendo isto em vista, não se pode afirmar que o Juízo a quo se imiscuiu no mérito administrativo, haja vista que é a própria Administração quem reconhece a contínua defasagem do quadro de docentes da rede estadual de ensino e vem corroborando esse fato com a consuetude já decenal de contratação de professores temporários. Ora, o juízo de conveniência e oportunidade do administrador dizia respeito à verificação da demanda por professores, e, a esse respeito, não pairam mais dúvidas. A discricionariedade da Administração é relativa ao quê, não ao como fazer: não é porque tenha liberdade para definir a conveniência e oportunidade para a prática de um ato que lhe seja franqueada a opção quanto à forma de faze-lo. E a forma legal e, ainda mais, constitucionalmente prescrita para a contratação de professores é o concurso público, a não ser que se tratasse de uma situação premente, particularíssima, na qual, v.g., encontrando-se momentaneamente desfalcado o corpo docente estadual, poderiam ser admitidos professores temporários para não se comprometer um semestre letivo, vindo-se, porém, a promover concurso com presteza.
Destarte, não se está falando de uma ação condenatória em obrigação de fazer, mas de uma ação em que se questiona a validade de reiterados atos administrativos praticados ao revés das formalidades legal e constitucionalmente prescritas. A determinação de nomeação de professores por concurso não é senão corolário do princípio da continuidade do serviço público, pois se, como se reconhece, milhares de professores são admitidos por contrato temporário, seu afastamento certamente comprometerá fatalmente a prestação de um serviço público caracterizado pela ordem constitucional pátria como verdadeiro direito fundamental.
A tripartição de Poderes, assim como outras tantas valiosas conquistas da Idade Contemporânea, tem ocasionalmente escudado as maiores iniqüidades a pretexto de se preservar a luminosa Civilização Ocidental contra as trevas da barbárie e da tirania. Basta olhar, por exemplo, o erístico argumento da doutrina Johnson sobre a disseminação da democracia para os povos ao redor do globo terrestre, mascarando as investidas imperialistas ianques.
A separação dos Poderes estatais deve ser enxergada comedidamente, sob pena de servir como mera divisão funcional, tal qual concebida na “Política” de Aristóteles. O texto constitucional a ela se refere falando da independência e harmonia entre o Legislativo, Executivo e Judiciário. Por harmonia, quer-se crer que a intenção do Constituinte não foi tão-somente a de ver prevalecerem a lhaneza e as boas relações sociais entre os membros daqueles, mas que se regulassem mutuamente, tendo em vista os fins últimos do Estado encerrados na Constituição. Assim, enxergar o presente caso exclusivamente pela ótica da independência, como dissemos acima, é mais cômodo, mas não bastante ao atendimento da verdade e realização do Direito, que ora pressupõe a intervenção “harmonizadora” do Judiciário.
Diante de tais considerações, parece-me bastante sensata a decisão atacada quanto aos seus fundamentos, revelando-se irretorquível nesse tocante. Não se mantém, contudo, nossa concordância, no que pertine aos elementos dispositivos do decisum. Do teor da decisão, chamam atenção duas grandezas que se apresentam desproporcionais: quantidade de vagas a serem preenchidas e prazo para cumprimento da decisão.
1. Da Quantidade de Vagas
Ao tempo do Relatório, consignamos que o juízo a quo, em sede de liminar, determinou a contratação de 8.440 (oito mil, quatrocentos e quarenta) professores efetivos, dispensando-se, concomitantemente, os atuais professores temporários. Atônito com a cifra, o Estado, agravando, suscitou a nulidade da decisão, apontando-lhe caráter exauriente e irreversível, questão que não conhecemos como preliminar, mas que ora passaremos a esmiuçar.
Objeta o agravante, em face da decisão em lanço, que esta não poderia ser satisfativa do direito colimado, característica incompatível com a natureza liminar do provimento jurisdicional proferida. Tal conclusão, o Estado infere do cotejo dos dispositivos a seguir:
a) Artigo 1º da Lei nº 9.494/97:
“Aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil o disposto nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei nº 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992”.
b) Artigo 1º, §3º, da Lei nº 8.437/92:
“Não será cabível medida liminar que esgote, no todo ou em qualquer parte, o objeto da ação”.
É comezinha a distinção entre provimento cautelar e a tutela principal requerida na Ação principal à qual aquele dá guarida: o primeiro tem natureza instrumental, de assegurar a utilidade ou mesmo a consecução da segunda. Tal discrepância também se aplica quanto à medida liminar em sede cautelar, por imperativo do argumento lógico ad minus (se a medida cautelar não pode ser satisfativa, muito menos sua liminar o seria). Foi esse o raciocínio perfilhado pelo segundo dispositivo acima transcrito, extraído da Lei nº 8.437/92, cuja Ementa consigna: “Dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público e dá outras providências”. Trata-se, pois, de uma lei disciplinadora das cautelares propostas em face da Fazenda Pública, sendo o parágrafo 3º um consectário das construções doutrinárias acerca da natureza das medidas de cautela, contexto no qual faz todo sentido tal proibição.
A Lei nº 9.494/97, no supracitado artigo 1º, estende às antecipações de tutela previstas nos artigos. 273 e 461 do Código de Processo Civil, a vedação imposta contra as cautelares, como restrição à regra geral da satisfatividade das tutelas antecipadas, quando se tratar do Poder Público como demandado. Sendo uma norma de exceção, diminuidora dos direitos do demandante, sua interpretação deve ser restritiva, como prescreve a boa hermenêutica; e é a própria letra da sentença normativa que proscreve a natureza satisfativa às tutelas antecipadas na forma do CPC, e só nestes casos, portanto, deve ser aplicada a proibição. O caso em pauta diz respeito a uma liminar em Ação Civil Pública, na forma do artigo 12 da Lei nº 7.347/85:
“Poderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo”.
Não desconheço a semelhança ontológica entre a liminar da Ação Civil Pública e a tutela antecipada, mas, devendo-se dispensar interpretação restritiva ao artigo 1º da Lei nº 9.494/97, não podemos estender-lhe a aplicação à decisão aqui reapreciada. Aliás, a especificidade da vedação à antecipação de tutela do CPC é bastante plausível do ponto de vista deontológico, posto serem os interesses em jogo numa Ação Civil Pública muito mais amplos e vitais para o todo social do que normalmente o são aqueles sobre os quais incide a norma geral do Código Processual, recomendando menor benevolência para com a Fazenda Pública
Por outro lado, porém, mesmo reconhecendo a possibilidade de liminar satisfativa, devemos permanecer vigilantes a respeito dos seus limites, para que, por culpa do exame ainda incipiente da causa, quando da concessão da medida, esta não seja deferida além dos limites do direito perseguido.
Relembro que a decisão reexaminanda determinou a abertura de concurso público para a contratação de 8.440 (oito mil, quatrocentos e quarenta) docentes efetivos. Ao escrutar os autos, pude perceber que a defasagem não chega a esta monta: concurso público em trâmite, deflagrado pela Portaria SARE/SEDUC nº 037/05, aprovou mais de 3.000 (três mil) novos docentes, que pendem de nomeação. Nem é necessária precisão cartesiana para contestar o contingente estipulado na liminar atacada: primeiro, devem-se nomear os candidatos aprovados, averiguar, em seguida, a demanda supérstite, para, aí sim, estipular-se a quantidade de vagas a prover em novo certame. Rejeitar a estimativa realizada pelo juízo a quo para fazermos outra aleatoriamente, agora, seria precipitação; a única certeza que temos, por ora, é de que o quantitativo de 8.440 é exagerado. Somente para ilustrar a dinâmica das estatísticas, corroborando a impossibilidade de determinar aprioristicamente o número de vagas a serem providas pelo futuro concurso, apenas entre a chegada do processo à minha relatoria e a presente data, tivemos notícia da nomeação, no último dia 08, de 1723 (mil, setecentos e vinte e três) professores aprovados no último concurso, além do anúncio da nomeação de mais 1615 (mil, seiscentos e quinze) docentes até o final do mês corrente.
Mas todo esse sopesamento e ajustes administrativos reclamam uma grandeza sonegada ao agravante pelo juízo de 1º Grau: tempo. É o que passamos a analisar no tópico a seguir.
2. Do Prazo para Cumprimento da Decisão
Uma solução mais amadurecida e exata não se pode alcançar de um arroubo; não é a inspiração, mas muita transpiração, laborioso sopesamento e investigação que permitem o equilíbrio requerido por uma situação como a que ora se põe. A reversibilidade da medida em apreço (tenhamos em mente que ainda se trata de uma precária liminar) depende de sua aplicação paulatina e gradativa, principiando pela já aludida nomeação dos candidatos em espera, oriundos do concurso de 2005, seguido de um posterior levantamento das vagas ainda pendentes em relação ao total de cargos componentes do quadro oficial de docentes, e seguinte realização de novo certame, sob pena de se promover açodado concurso com proporções assaz superiores às necessárias e restarem nomeados candidatos fadados ao ócio, sem serviço.
A irreversibilidade da medida liminar não deve ser compreendida como irreversibilidade jurídica, mas fática. Só assim se pode entendê-la, do contrário, não faria sentido algum esse critério, haja vista que, sendo as liminares provisórias, podem ser revogadas – “revertidas”, portanto – a todo tempo. A liminar concedida determina, além da abertura e conclusão do concurso em 180 dias, a rescisão dos contratos temporários em igual período. Suponhamos a situação, por sinal, bastante factível, de o Estado não lograr concluir o processo seletivo, nomeação e empossamento (sobretudo porque, contado a partir de 18 de janeiro, o prazo sequer atingirá 180 dias, na prática, devido à vedação de contratação de pessoal nos 3 meses anteriores às eleições), ou ainda o caso de não serem preenchidas todas as vagas ofertadas. Não nomeando os 8440 professores em tempo, o Estado estará sujeito à multa diária de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) cominada, mas o pagamento da pena pecuniária não tem o condão de suprir a ausência dos professores temporários, que serão afastados ao cabo do prazo estabelecido na decisão. Sem os temporários e sem os efetivos, os alunos terão o semestre prejudicado, com a continuidade de sua instrução comprometida. Ainda que haja ulterior reposição de aulas, certamente a pressa com que serão ministradas lhes aviltará a qualidade. E o que significa isso senão um dano, no mínimo, de difícil reparação?
Não pode prosperar um provimento cuja efetivação seja prevista para prazo tão lacônico. Respondendo ao pedido de informações que formulamos, o magistrado a quo sinaliza a possibilidade de dilação no prazo, reconhecendo, ele próprio, a probabilidade de não ser o mesmo suficiente. Ora, se, a priori, vislumbra-se a falta de perspectiva de cumprimento do interstício, o razoável seria estender de pronto o prazo; toda norma jurídica, conquanto preveja possibilidade de descumprimento, não é destinada à violação, mas à observância. Não se prescreve o irrealizável.
Trata-se de um problema arraigado, de mais de uma década, que não pode ser resolvido abruptamente. Para isso, já atinou o insigne Procurador de Justiça, Dr. Waldemir Tavares de Albuquerque, ao sugerir, em seu judicioso e ponderado Parecer, a dilação do interregno para 10 de janeiro, já passado o período de 03 (três) meses posteriores aos escrutínios estaduais.
Observados esses reparos em relação ao prazo e à quantidade de vagas a serem ofertadas, a decisão atacada é legal e acertada. Além de se insurgir contra uma prática ilegítima incrustada em nossa Administração por longa data, dando mostra de uma postura combativa e vigilante do Judiciário, abre ensanchas ao próprio Executivo para consagrar a atual gestão com a realização do notável feito moralizador. Enchem-se de júbilo aqueles que prezam pela lídima administração da coisa pública ao sentirem esse brado de justiça se reverberando, inclusive em nível nacional: o Procurador-Geral da República, Antônio Fernando Souza, ingressou com a ADIn nº 3721 contra lei estadual do Ceará, autorizadora de contratações análogas naquele Estado. Animam-se os justos com vozes solidárias ao seu coro; enchem-se de convicção de que ações como a presente não são mera temeridade, mas um gládio que empunham em sua arrojada cruzada civilizacional.
Objeta o Estado a necessidade de autorização legislativa para criação de cargos públicos, bem como de novas despesas. A essas duas oposições, responde satisfatoriamente a dilação do prazo que proponho, abrindo-se um tempo de respiro para, verificando a demanda por professores após a nomeação dos candidatos em espera, o Executivo propor a abertura de concurso, destinando, já na proposta do orçamento anual para 2007, a ser votada nos próprios meses, recursos bastantes para a remuneração dos novos efetivos. Recursos, aliás, que não discreparão enormemente dos já atualmente empenhados no pagamento de docentes temporários. É certo que a remuneração destes é um tanto menor que a devida a um servidor dos quadros da Administração, mas é o preço a pagar pela moralização na gestão da coisa pública, aliada à prevenção dos inconvenientes de sucessivas seleções para professores temporários, com a movimentação de todo um aparato burocrático para levar a cabo esses processos seletivos.
Em face do exposto, meu voto é no sentido da reforma parcial da decisão questionada, para dilatar o prazo de seu cumprimento até 10 (dez) de janeiro de 2007, determinando a nomeação dos candidatos aprovados no certame de 2005 ao longo deste ínterim. Feito isto, deve-se proceder a um levantamento da demanda de pessoal no quadro de docentes da rede pública estadual, sendo a quantidade encontrada o parâmetro para as vagas a serem abertas em concurso até tal data, substituindo-se pelos egressos da seleção os professores temporários restantes, vedada a contratação de docentes provisórios, a menos que precedida de prévio ato justificativo devidamente fundamentado, no qual se demonstrem os requisitos constitucionais para essa espécie de contratação.
É como voto.
Des. Luiz Carlos de Barros Figueirêdo
Relator