Sétima Câmara Cível
Apelação Cível nº 87461-5 – Recife (2ª Vara da Fazenda Pública)
Apelante : Transroll Navegações S/A
Apelado : SUAPE – Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros
Relator : Des. Luiz Carlos de Barros Figueirêdo
VOTO – mérito EQC
Como já mencionado no relatório de fls. dos autos, trata-se de recurso de apelação cível movido pela empresa demandada, Transroll Navegações S/A, contra a sentença condenatória que lhe foi imposta pelo juízo a quo em vista da, assim considerada, culpa de seu preposto (comandante do navio “Betelgeuse”) na colisão envolvendo a referida embarcação e parte do cais de atracação do Píer de Granéis Líquidos do Porto de Suape, o qual restou parcialmente destruído quando da manobra de desatracação do navio.
Em suas razões de inconformismo, alega a apelante que a sentença combatida partiu de premissa notadamente equivocada, posto toda a matéria fática dos autos remontar na imperiosa e incontroversa constatação da ocorrência de caso fortuito, qual seja, fenômeno natural imprevisível (“trovoada”), como o verdadeiro “responsável” pelo sinistro, não sendo adequado imputar tal responsabilidade ao seu preposto, posto ele ter agido, assim como o prático que o auxiliava naquele momento – sobre o qual já não mais se discute qualquer responsabilidade, já que, segundo o juízo singular a quo, não restou caracterizada sua culpa, entendimento esse que não foi atacado por nenhuma das partes litigantes – com toda a cautela e prudência necessárias à boa realização da manobra de desatracação do navio, quando, inopinadamente, foram surpreendidos com o retorno violento daquele fenômeno natural, no que, apesar de seus louváveis esforços, não conseguiram evitar dita colisão.
Nesse sentido, aduz a apelante, é o posicionamento do Tribunal Marítimo – órgão administrativo competente, dentre outras atribuições, para julgar os acidentes e fatos da navegação marítima – sobre o caso em apreço, onde, divergindo das conclusões firmadas no Inquérito instaurado pela Capitania dos Portos de Pernambuco, se decidiu por exculpar não só o prático, mas também o comandante do navio “Betelgeuse”, posicionamento esse, entretanto, que não foi sequer merecedor de consideração na sentença proferida pelo juízo a quo, donde se verificaria novamente o erro daquele julgador monocrático na apreciação do caso sub examen¸vez que os julgados daquele tribunal detém, por expressa força de lei (art. 18, da lei nº 2.180/54), presunção relativa de certeza, somente debelada na hipótese de violação à lei ou em decorrência de produção de prova judicial suficiente à impugnação das circunstâncias fáticas ali apuradas.
Vê-se, portanto, diante dos argumentos meritórios citados pela apelante relacionados ao sinistro, que a solução da presente controvérsia reside, fundamentalmente, em saber se houve ou não a incidência de causa excludente de responsabilidade (caso fortuito) capaz de desonerar a responsabilidade de seu preposto na colisão supra, mas também, em saber se, da análise destes autos, seria possível ao julgador de 1ª instância firmar, ainda que implicitamente, posicionamento contrário ao daquele órgão técnico-administrativo (Tribunal Marítimo).
Dito isso, passo agora a analisar a sugerida causa excludente de responsabilidade, primeiro fundamento da peça recursal da apelante.
Conforme se denota dos autos, inclusive através da própria narrativa das peças recursal e de defesa da ora apelante, a manobra inicial de desatracação do navio “Betelgeuse” restou adiada pelo seu comandante em vista das más condições meteorológicas que se ofereciam àquela oportunidade, vez que, “cerca das 20:00 horas quando rebocadores e o Prático estavam prontos para a manobra, houve aquele fenômeno meteorológico que se denomina tecnicamente como ‘trovoada’” (fls. 96), razão pela qual, diante da violência daquele fenômeno, implicando em fortes rajadas de vento, chuva consistente e mar agitado, decidiu-se esperar a melhora dessas condições para que, só então, fosse retomada a aludida manobra de desatracação do navio.
Tal espera – conforme se depreende do próprio teor do acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo (fls. 573/586) -, se deu por aproximadamente trinta minutos, ocasião em que o comandante decidiu pela retomada da manobra face à sua constatação de que teria havido a melhora das condições meteorológicas, onde o vento diminuíra consideravelmente, o céu já apresentava seus astros e o mar se mostrava apaziguado. Em outras palavras, para o comandante do navio, tudo levava a crer que a “trovoada” havia se esvaído.
Ocorre que, corroborando o posicionamento do julgador monocrático de 1º grau, bem como de ambos os representantes ministeriais que atuaram neste feito, penso que, in casu¸ a espera de apenas trinta minutos para retomar a manobra de desatracação do navio – independente da sugerida melhora das condições meteorológicas – se mostrou nitidamente precipitada, quanto mais quando, além de ter-se dado em período noturno (onde as atenções devem, naturalmente, ser redobradas), havia se passado pouquíssimo tempo desde a ocorrência daquele intenso fenômeno natural, não sendo razoável presumir que, em tão breve lapso temporal, esse violento fenômeno não mais tornaria a ocorrer, principalmente quando ele, comandante, era inegavelmente sabedor das más condições meteorológicas previstas para aquele dia.
Ora, ainda que se possa acatar, hipoteticamente, a tese de que o comandante do navio não detinha conhecimento preciso quanto ao local e momento exatos da ocorrência daquele fenômeno (e de sua conseqüente repetição), certo é que, como se pode depreender da própria leitura de sua defesa administrativa junto ao Tribunal Marítimo (fls. 489/497), lhe foi dada prévia ciência, através dos boletins de previsão meteorológica expedidos pela Marinha brasileira (por mais falhos ou inconsistentes que sejam), quanto às más condições meteorológicas oferecidas para aquele dia, as quais se mostravam, inclusive, propícias à incidência de trovoadas, como destacado no próprio relatório técnico apresentado pelo preposto da parte apelante em sua defesa naquela esfera administrativa (fls. 510/520 dos autos).
Nesse sentido, transcrevo breve trecho de uma das conclusões do citado relatório:
“4.9 – Com base nas informações disponíveis, as conclusões podem ser sumarizadas nos itens abaixo:
a) As condições meteorológicas predominantes na área do Porto de Suape no dia 17 de fevereiro de 1994 indicam que rajadas de vento associadas a trovoadas eram prováveis de ocorrer. As características meteorológicas associadas às trovoadas indicam que a violência de tais rajadas de vento poderia vir a afetar a manobra de desatracação do N/M BETELGEUSE;” (fls. 520)
Portanto, ainda que, no item seguinte de suas conclusões, haja aquele perito destacado a impossibilidade – devido às restrições técnicas dos próprios aparelhamentos meteorológicos disponíveis no Brasil -, do comandante precisar com exatidão o local e horário daquele violento fenômeno natural, vê-se que, ainda assim, faltou-lhe prudência quando da retomada da manobra de desatracação, posto a probabilidade de ocorrerem trovoadas na área do Porto de Suape já havia, inclusive, se concretizado, não sendo razoável pensar, quanto mais em se falando de profissional de tão elevado gabarito, que tais condições climáticas desfavoráveis jamais poderiam se repetir (independente de sua proporção) naquele local, quanto mais em tão curto espaço de tempo.
Ora, dizer que o seu preposto tomou todas as precauções de um homem mediano para retomar a manobra de desatracação do navio com base nas condições climáticas que se lhe apresentavam logo após a “trovoada”, a meu ver, não contribui em nada às suas pretensões, vez que, em face do próprio exercício, da experiência, da disciplina e dos conhecimentos técnicos exigíveis e inerentes à sua profissão, é se de se esperar, presumivelmente, que o comandante de um navio de tão grandes proporções (cerca de 183 metros de comprimento, vide fls. 333) somente execute suas manobras visando o alcance da “perfeição”, dentre as quais pode-se enumerar, obviamente, a de desatracar o referido navio sem que haja o menor perigo de insucesso ou, ao menos, buscando minimizar ao máximo essa possibilidade.
Nesse sentido, valho-me de brilhante julgado do Egrégio TJRS, bastante similar ao caso vertente, para elucidar ainda mais meu posicionamento:
EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL. AFRETADORA E ARMADORA DE EMBARCACAO MARITIMA. ACIDENTE NAUTICO. TRIBUNAL MARITIMO. PARECER. EFEITOS. (…) INDIVIDUO QUE, NA SITUACAO CONCRETA, OU NO CUMPRIMENTO DE SEUS DEVERES, PODIA DISPOR DE INFORMACOES OU POTENCIALIDADES NOTAVELMENTE SUPERIORES AS DO HOMEM MEDIO. CONSOANTE NOVO CRITERIO DE AVALIACAO DA CULPA, QUE TEM EM CONTA VARIACOES SUBJETIVAS DO STANDARD PROPOSTO COMO MODELO GERAL, NA DOUTRINA TRADICIONAL, QUANDO ENTRA EM JOGO A RESPONSABILIDADE DE SUJEITOS QUE DISPONHAM DE INFORMACOES, NOTAVELMENTE SUPERIORES AS DO HOMEM MEDIO, ESTAS DEVEM CONDUZIR A MAIOR SEVERIDADE NA APRECIACAO DA CONDUTA DO AGENTE. SENTENCA MANTIDA. VOTO VENCIDO. (Apelação Cível Nº 70001379965, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira, Julgado em 29/04/2002)
Por outro lado, não há como se olvidar que, quando do depoimento dos mestres rebocadores – Srs. Edílson Soares da Costa e Amauro Lautério dos Santos, auxiliares no reboque do navio naquela manobra de desatracação -, tomados no Inquérito instaurado pela Capitania dos Portos de Pernambuco, foram eles unânimes em afirmar que não havia espaço suficiente para a execução da manobra (vide fls. 250 e 256), posto as dimensões do navio serem bastante elevadas para o local de desatracação, onde não havia área suficiente para manobras de emergência, como, aliás, reconheceu a própria apelante em sua peça de defesa (fls. 95/109), conforme bem destacou o douto procurador de justiça em seu valoroso parecer:
“Por outro lado, é a própria Apelante, ao contestar a ação, que reconhece que no Porto de Suape o espaço entre os terminais de Granéis Líquidos e Industrial postados paralelamente é de 260 metros, enquanto o navio ‘Betelgeuse’ possui 183,70 metros, afirmando que um navio com tal dimensão, realizando suas evoluções nessa área muito restrita, terá muito pouco espaço de ‘lazeira’ para qualquer emergência.” (fls. 703)
E continua o douto representante ministerial:
“Essa circunstância é corroborada pela Perícia Técnica de fls. 431/434, elaborada a partir de dados colhidos junto aos mestres rebocadores e o Prático que auxiliaram diretamente a desatracação do navio na data do acidente, constatando-se que houve falha na avaliação do risco de colisão, principalmente durante a manobra de giro do navio na proximidade do cais de múltiplos usos, cerca de 80 metros, quando ainda havia espaço e muita água pela popa. Foi constatado também que houve precipitação na avaliação das condições atmosféricas, até porque a operação de desatracação já havia sido adiada face as desfavoráveis condições meteorológicas, principalmente pela ação do vento. Na realidade, não havia espaço para a manobra de emergência, o que era do conhecimento tanto do Comandante da embarcação como do Prático que auxiliou as manobras.”
De se observar, ainda, que, como destacado no Relatório final do Inquérito da Capitania dos Portos de Pernambuco (vide fls. 436/440 dos autos), “segundo as Normas de Tráfego e Permanência do Porto de Suape, a desatracação noturna ficará liberada, desde que as condições de tempo permitam e que a operação se mostre tecnicamente possível” (grifei), no que, verifico, houve inobservância injustificável do preposto da empresa apelante sobre tais regramentos e diretrizes normativas, não havendo como, desta feita, se falar em causa excludente de responsabilidade (ou mesmo culpa concorrente).
Apenas a título ilustrativo, transcrevo julgado proferido pelo antigo Tribunal Federal de Recursos nos autos da Apelação Cível nº 37441, posto também se assemelhar, em muito, à hipótese dos autos (apesar de manifestamente excluída, in casu, a culpa recíproca):
“EMENTA: DIREITO MARITIMO. AVARIAS CAUSADAS EM GUINDASTES DO CAIS, POR NAVIO, AO REALIZAR MANOBRAS DE DESATRACACAO. HAVENDO FALTADO AOS RESPONSAVEIS PELO BARCO, NA OCASIAO DA OCORRENCIA CAUTELA NECESSARIA A EVITAR O ACIDENTE, E NAO ESTANDO, DE OUTRA PARTE OS GUINDASTES ATINGIDOS EM POSICAO CORRETA, TEM-SE COMO CONFIGURADO CULPA RECIPROCA, REDUZINDO-SE A METADE A INDENIZACAO DEVIDA. APELACAO PROVIDA PARCIALMENTE.” (Apelação Cível Nº 37441, Terceira Turma Cível, Tribunal Federal de Recursos, Relator: Arnaldo Rizzardo, Julgado em 12/12/1980)
Tenho, portanto, diante das circunstâncias em que se deu a colisão, que o preposto da empresa apelante concorreu direta e exclusivamente para o sinistro, inexistindo, na hipótese dos autos, a sugerida imprevisibilidade daquele fenômeno natural (“trovoada”) que pudesse caracterizar a causa excludente de responsabilidade, já que sua incidência era bastante presumível, restando, assim, facilmente evitável o sinistro, acaso houvesse o comandante agido com o zelo e a prudência que lhe deviam ser peculiares.
Nesse sentido, valho-me, novamente, da transcrição de mais um julgado proferido pelo Egrégio TJRS, o que faço em vista da sua manifesta similitude com o caso vertente:
EMENTA: APELAÇÃO CIVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. CASO FORTUITO. FORÇA MAIOR. VENDAVAL. Os danos só ocorreram porque os transbordadores se desprenderam de seus cabos por força do vendaval. A excludente de responsabilidade somente pode ser reconhecida se houver comprovação de que à proprietária da coisa tenha sido impossível evitar ou impedir a ocorrência do evento. DOUTRINA ACERCA DA RESPONSABILIDADE CIVIL. No caso, sem tal prova, não se reconhece a excludente. (…) RECURSO IMPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70004645917, Segunda Câmara Especial Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Beatriz Iser, Julgado em 11/03/2003)
Vê-se, portanto, diante de tudo o que até aqui exposto, bem como do que consta do conjunto probatório dos autos, não há se falar em causa excludente de responsabilidade a desonerar a empresa apelante da condenação que lhe foi imposta pelo julgador singular a quo, posto que, a meu ver, comprovada está a culpa de seu preposto na ocorrência do sinistro.
Ultrapassada essa controvérsia, cuido, agora, em analisar os questionamentos da apelante quanto à inobservância/preterição da sentença guerreada sobre o julgamento proferido pelo Tribunal Marítimo.
Nesse sentido, vejo que, também neste aspecto, não merece prosperar a tese recursal da apelante.
Isso porque, ainda que o julgador de 1ª instância não tenha fundamentado expressamente, em seu decisum, que havia se posicionado contrariamente ao julgado emanado por aquele Corte Marítima, o fez de forma implícita, não havendo que se falar em qualquer mácula proveniente dessa sua forma de agir ou mesmo da condenação imposta à empresa apelante com base em seu livre convencimento.
Até porque, muito embora haja previsão legal que assegure presunção relativa de certeza aos julgados do Tribunal Marítimo, sua competência se restringe unicamente à esfera administrativa, cujo teor, no julgamento dos acidentes marítimos, deve se resumir, tão somente, à sua natureza e extensão, indicando suas causas e responsáveis, para aplicar-lhes penas administrativas e propor medidas preventivas de segurança para a navegação.
Nesse sentido, evidente que seria demais pensar que tais decisões, por mais que revestidas de tecnicidade, poderiam se sobrepor aos julgados emanados pelo Poder Judiciário, até porque, além do Tribunal Marítimo lhe ser mero auxiliar, só àquele é dado o exercício da função jurisdicional ou, em outras palavras, a função de dizer o direito no caso concreto.
Acerca do presente tema, cuido trazer breve excerto de valoroso artigo publicado na rede mundial de computadores:
“Na verdade, os ‘julgamentos’ do Tribunal Marítimo são pareceres técnicos, ora de maior, ora de menor importância, mas, sempre, e tão-só, pareceres técnicos, donde se infere que a (sic) decisões do aludido órgão colegiado administrativo são extremamente limitadas; Exatamente por isso é que, no âmbito de sua limitada competência, pode aplicar penas administrativas e pecuniárias aos envolvidos num determinado sinistro.
Sua atuação não tem o condão de afastar eventual apreciação do Poder Judiciário. Nem mesmo em relação ao mérito, pois embora o Tribunal Marítimo tenha natureza jurídica de órgão administrativo, sua decisão não possui a mesma força de uma decisão administrativa em sentido estrito.
Mas a decisão do Tribunal Marítimo não se encontra revestida de tal atributo, porque não é, em essência uma decisão administrativa, mas mero parecer técnico, sobre matéria específica, exarada por órgão colegiado de natureza administrativa.
Daí dizer que suas decisões, embora abalizadas e técnicas, estão sempre sujeitas à revisão jurisdicional e não vinculam o Juiz no momento de decidir, como nada, em verdade, tem poder de orientar a decisão de um Magistrado senão sua própria convicção (conforme primazia do princípio da livre convicção do julgador).” (PACHECO, Paulo Henrique Cremoneze, e; FILHO, Rubens Walter Machado, “A relativização das decisões do Tribunal Marítimo nas lides forenses envolvendo o direito marítimo”, disponível em:
Comungo inteiramente com o posicionamento acima ventilado, pois, ainda que se admita a presunção juris tantum de certeza aos julgados proferidos pelo Tribunal Marítimo, tais servem apenas como mais um meio de prova a ser avaliado pelo magistrado na solução do litígio que se lhe apresenta, restando plenamente legítimo que, da sua livre apreciação sobre as provas carreadas aos autos (princípio da livre convicção do julgador), acabe por divergir do posicionamento emanado naquela esfera administrativa.
Daí que, nos termos do art. 131, do CPC, o fundamento adotado pela apelante de que “não pode o julgador recusar a eficácia probatória que a lei conferiu aos julgados da Corte Marítima, apenas baseado em sua própria reavaliação dos fatos técnicos ou na sua pessoal reinterpretação do acidente de navegação” (fls. 633/634), se mostra claramente desarrazoado e inconcebível de aceitação em nosso ordenamento jurídico, vez que, com tal assertiva, pretende a apelante fazer valer uma decisão administrativa (proferido por órgão meramente auxiliar do Poder Judiciário) em sobreposição ao próprio exercício da atividade jurisdicional pelo Estado-Juiz.
Sobre o presente tema, veja-se que esse é o posicionamento, desde há muito, pacificado pelo Excelso Supremo Tribunal Federal:
“AVARIAS GROSSAS. COMO TAIS NÃO SE CONSIDERAM AS DESPESAS HAVENDO FALTA OU NEGLIGENCIA DO CAPITAO OU DA TRIPULAÇÃO. ART. 765 DO CÓDIGO COMERCIAL. O PRONUNCIAMENTO DO TRIBUNAL MARITIMO VALE, PERANTE O PODER JUDICIARIO, NÃO COMO DECISÃO MAS COMO LAUDO, AO QUAL SERÁ DADO O VALOR QUE MERECER. APLICAÇÃO DA LEI, EM FACE DA PROVA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO SEM CABIMENTO.” (RE nº 25193, 1ª Turma STF, Rel. Min. Luis Gallotti, julgado em 13/11/55)
“AS DECISÕES DO TRIBUNAL MARITIMO ADMINISTRATIVO PODEM SER CONTRARIADAS PELA PROVA DADA EM JUÍZO. A RE FOI CONDENADA A REPARAR O DANO, QUE RESULTOU DE CULPA DO PREPOSTO, NÃO HAVENDO AQUELA CONTRARIADO A PRESUNÇÃO DE QUE FALTARA A SEU DEVER DE VIGILANCIA.” (RE nº 7193, 2ª Turma STF, Rel. Min. Hahnemann Guimarães, julgado em 17/10/50)
Desta feita, uma vez que do conjunto probatório dos autos restou demonstrada a culpa exclusiva do preposto da empresa apelante na ocorrência do sinistro, entendo não haver impedimento algum ao magistrado a quo (e nem a este Juízo ad quem), em proferir decisão judicial contrária ao posicionamento emanado pelo Tribunal Marítimo, posto ser livre, em nosso ordenamento jurídico, a apreciação e valoração da prova pelo julgador, visto se tratar de verdadeira prerrogativa que lhe é conferida pelo art. 131, do CPC.
Superada mais essa controvérsia, restando plenamente demonstrada a culpa e o nexo de causalidade (este último sequer objeto do inconformismo recursal) envoltos ao sinistro narrado nos autos sub examen, resta-me, agora, analisar os danos suportados pela empresa pública apelada, já que objeto de irresignação específica da empresa apelante.
Quanto ao presente tema, aduziu a apelante que os alegados danos materiais suportados pela apelada não restaram cabalmente demonstrados nos autos, posto não estar plenamente comprovado, através das competentes planilhas orçamentárias, recibos de pagamento ou documentos afins, que o valor perseguido a título indenizatório seria equivalente aos prejuízos por ela reclamados, no que teria havido desobediência à regra processual encartada no art. 333, I, CPC, tendo sua condenação se mostrado absurda, também neste particular, em face da sugerida inversão do ônus probatório, quanto mais quando houve específicas impugnações na sua peça de defesa que não foram objeto de análise pelo julgador a quo, mas que fatalmente reduziriam o valor da indenização.
Nesse particular, tenho que assiste razão, ao menos em parte, a empresa apelante.
Isso porque, ainda que diversos tenham sido os prejuízos ocasionados na colisão provocada pela desafortunada manobra de desatracação do navio da empresa apelante (vide documento intitulado “despesas já realizadas/comprometidas/previstas por Suape em decorrência do acidente”, colacionado às fls. 13 dos autos), não é de sua responsabilidade indenizar os prejuízos advindos com o custo da paralisação dos trabalhos de recuperação do Píer por força de acidente ocorrido durante os serviços de retirada dos escombros (item “B-1”, daquele citado documento), o qual, além de não restar comprovado nos autos, teria sido provocado por falha da própria empresa pública apelada em decorrência de sua imprudência na retirada daqueles escombros, não podendo, tal prejuízo, ser tomado como conseqüência imediata do sinistro.
Assim, tenho como forçoso seja retirado, da condenação que lhe foi imposta, o valor correspondente ao denominado “custo de paralisação” (item “B-1”, documento de fls. 13), cujo importe é de R$ 13.725,00 (treze mil e setecentos e vinte e cinco reais).
No que tange aos demais danos materiais, entretanto, tenho que os valores reclamados estão concordes com a dimensão da lesão sofrida, até porque não produziu, a apelante, prova capaz de desconstituir as pretensões indenizatórias da empresa pública apelada (inclusive porque não se há como presumir, do conjunto probatório dos autos, que o Píer avariado continuou em pleno funcionamento após o sinistro), restando inobservada, portanto, a regra insculpida no art. 333, II, do CPC.
Nesse sentido, veja-se que a própria vistoria da Sociedade Brasileira de Vistorias e Inspeções (Brasil Savage S/A), efetuada a pedido da empresa apelante, valorou, ainda que em moeda estrangeira (US$ 950.000,00), que o custo dos reparos na reconstrução das instalações portuárias poderia alcançar patamar bem próximo daquele reclamado nestes autos, não tendo sido expresso em quais seriam os custos e serviços necessários apenas porque, quando da sua lavratura, ainda não se havia decidido qual o método que seria adotado na sua reconstrução (fls. 296/300).
Assim, uma vez que tal vistoria foi produzida a mando da própria apelante e, por outro lado, os demais documentos carreados aos autos demonstram a compatibilidade daquela avaliação com o valor reclamado na peça exordial, tenho como adequado o quantum indenizatório fixado na sentença do juízo de 1º grau, devendo ser minorado, tão somente, quanto aos valores relativos ao item “B-1” do documento de fls. 13 dos autos, alcançando a verba indenizatória o exato valor de R$ 1.160.632,88 (um milhão, cento e sessenta mil, seiscentos e trinta e dois reais e oitenta e oito centavos), cuja correção monetária deverá ser efetuada nos moldes estabelecidos pelo juiz de 1º grau, até porque não foi objeto de irresignação por nenhuma das partes litigantes.
Por fim, no que tange ao último fundamento ventilado na peça recursal do apelante, qual seja, a redução dos honorários advocatícios arbitrados em patamar máximo pelo juízo a quo, tenho como adequada a minoração do percentual dessa verba honorária.
Isso porque, como bem destacou a apelante em suas razões recursais, o processamento deste feito ocorreu de forma notadamente regular e sem maiores desdobramentos ou incidentes processuais, não tendo, o patrono da apelada, despendido esforços “extraordinários” na defesa dos interesses de seu cliente que justificassem a fixação de percentual de honorários advocatícios em tão elevado grau (20% sobre o valor da causa), independente do quantum discutido nestes autos.
Desta feita, entendo ser de bom alvitre haja, neste juízo ad quem, a redução da verba honorária para que reste arbitrada em patamar condizente com a natureza e o processamento que foi dado aos presentes autos, razão pela qual tenho por fixá-la no percentual de 15% (quinze por cento) sobre o valor da condenação, observados os preceitos do art. 20, § 3º, do CPC.
Ante todo o exposto, consoante acima demonstrado e devidamente referenciado no corpo deste VOTO, sou pelo PROVIMENTO PARCIAL do Recurso de Apelação para, ainda que confirmando a responsabilidade da empresa apelante em responder pelos danos causados à apelada em decorrência do sinistro narrado nestes autos, sejam reduzidos tanto a verba indenizatória – restando a condenação fixada a título de danos materiais no importe de R$ 1.160.632,88 (um milhão, cento e sessenta mil, seiscentos e trinta e dois reais e oitenta e oito centavos) – como o percentual dos honorários advocatícios, esses minorados para 15% (quinze por cento) sobre o valor da condenação, nos termos do art. 20, § 3º, do CPC.
É como voto.
Des. Luiz Carlos de Barros Figueirêdo
Relator
Sétima Câmara Cível
Apelação Cível nº 87461-5 – Recife (2ª Vara da Fazenda Pública)
Apelante : Transroll Navegações S/A
Apelado : SUAPE – Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros
Relator : Des. Luiz Carlos de Barros Figueirêdo
EMENTA: DIREITO CIVIL, MARÍTIMO E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. COLISÃO ENVOLVENDO NAVIO E PARTE DO CAIS DO PÍER DE GRANÉIS LÍQUIDOS DO PORTO DE SUAPE DURANTE MANOBRA DE DESATRACAÇÃO DO NAVIO. DESTRUIÇÃO PARCIAL DO CAIS. CONHECIMENTO PRÉVIO, PELO COMANDANTE DO NAVIO, DAS MÁS CONDIÇÕES METEOROLÓGICAS PREVISTAS PARA O DIA, INCLUSIVE PROPÍCIAS À INCIDÊNCIA DE TROVOADAS. CAUSA EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE (CASO FORTUITO) NÃO CONFIGURADA, ANTE A PREVISIBILIDADE DO FENÔMENO NATURAL (TROVOADA) VOLTAR A OCORRER NAQUELE LOCAL, QUANTO MAIS EM TÃO BREVE LAPSO TEMPORAL (CERCA DE TRINTA MINUTOS APÓS SUA PRIMEIRA INCIDÊNCIA). IMPRUDÊNCIA DO COMANDANTE DO NAVIO NA RETOMADA DA MANOBRA E FALHA NA SUA AVALIAÇÃO DE RISCO DEVIDAMENTE COMPROVADOS NOS AUTOS. DEVER DE INDENIZAR. PRINCÍPIO DA LIVRE CONVICÇÃO DO JULGADOR. POSSIBILIDADE DE DIVERGÊNCIA DE POSICIONAMENTO DO PODER JUDICIÁRIO SOBRE O JULGADO EMANADO PELO TRIBUNAL MARÍTIMO, QUE LHE É MERO AUXILIAR. INDENIZAÇÃO REDUZIDA APENAS PARA ENQUADRÁ-LA NA EXATA EXTENSÃO DO DANO. CONDENAÇÃO EM VERBA HONORÁRIA EXCESSIVA. REDUÇÃO. APELAÇÃO CÍVEL QUE SE DÁ PARCIAL PROVIMENTO. DECISÃO UNÂNIME. A) Uma vez previamente ciente, o comandante do navio, sobre as desfavoráveis condições meteorológicas para aquele dia (inclusive propícias à incidência de trovoadas), não há se falar em causa excludente de responsabilidade (caso fortuito) a desonerar o dever de indenizar da apelante, vez que naturalmente responsável pelos atos de seus prepostos; B) Havendo prova nos autos de que a manobra de desatracação noturna do navio, além de precipitada (vez que a primeira trovoada se deu apenas trinta minutos antes da retomada daquela manobra), também inobservou as regras e diretrizes normativas do referido Porto, já que era operacionalmente inviável em face das próprias dimensões do navio e do local de sua desatracação – onde não havia área suficiente para eventual manobra de emergência -, evidencia-se de plano a imprudência do preposto da apelante, restando incontroversa sua culpa sobre o acidente; C) Em se tratando de sinistro comprovadamente provocado pela conduta imprudente do comandante do navio na retomada da manobra de desatracação, resta insubsistente a tese da causa excludente de responsabilidade (caso fortuito), posto se tratar, na hipótese dos autos, de fenômeno natural (trovoada) notadamente previsível, cujas precauções de segurança, acaso tomadas pelo comandante, evitariam fatalmente aquela colisão; D) Ainda que revestidos de presunção relativa de certeza, os julgados proferidos pelo Tribunal Marítimo jamais poderão se sobrepor àqueles emanados pelo Poder Judiciário, pois, além daquele órgão administrativo lhe ser mero auxiliar, tais julgados servem apenas como mais um meio de prova (prova técnica) a ser analisado pelo magistrado na aplicação do direito no caso concreto, sendo-lhe inteiramente legítimo julgar a demanda com base no princípio da livre convicção do julgador (art. 131, CPC); E) Ainda que demonstrada a culpa, o dano e o nexo de causalidade, não responde, a apelante, pelos prejuízos oriundos da paralisação do serviço de retirada dos escombros do Píer avariado, vez que tal prejuízo foi resultante de acidente provocado pela própria apelada durante o exercício desse serviço, restando imperiosa a redução da verba indenizatória neste particular; F) Não registrados, durante o curso desta demanda, maiores desdobramentos ou incidentes processuais que ensejassem esforços “extraordinários” ao patrono da empresa pública apelada na defesa de seus interesses, mostra-se inadequado fixar a verba honorária em seu grau máximo, cabendo sua redução para o percentual de 15% (quinze por cento) sobre o valor da condenação, conforme inteligência do art. 20, § 3º, do CPC; G) Apelação cível que se dá parcial provimento; H) Decisão unânime.
ACÓRDÃO EQC
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 87461-5, da Comarca de Recife, em que figuram, como Apelante, Transroll Navegações S/A, e, como Apelado, SUAPE – Complexo Industrial Portuário Governador Eraldo Gueiros,
Acordam os Excelentíssimos Senhores Desembargadores que compõem a Egrégia Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Pernambuco, unanimemente, em dar parcial provimento à Apelação Cível interposta por Transroll Navegações S/A, tudo de conformidade com relatório e votos em anexo, que, devidamente revistos e rubricados, passam a integrar este julgado.
Recife, ___ de ____________ de 2007.
Presidente
Des. Luiz Carlos de Barros Figueirêdo
Relator