ARTIGO DE CLAUDIO LACERDA

11-10-2016 Postado em Artigos por Luiz Carlos Figueirêdo

Leia abaixo, artigo escrito por Claudio Lacerda, Cirurgião, Professor da UPE e da UNINASSAU, publicado no Diário de Pernambuco, sobre como uma sentença, no entender dele, “coloca a lei a serviço da Justiça (e não a Justiça a serviço da lei, como fazia o SNT)”

 

Declare-a inexistente

 

Cláudio Lacerda.
cmlacerda1@hotmail.com

Publicação:11/05/2015 03:00

Em meados de 2008, conheci, por acaso, Wellingtânia Portela, nos corredores do Hospital Universitário Oswaldo Cruz. Aos 41 anos, vivia praticamente internada, numa cadeira de rodas, e retirava dezenas de litros de líquido do abdome toda semana. Sofria da síndrome de Budd-Chiari, que consiste na trombose das veias que saem do fígado. Evoluía com desnutrição assustadora, pesando menos de 40 quilos, sem conseguir andar, tamanha sua fraqueza. Seu abdome era descomunal, chegando a prejudicar a respiração, e seus membros superiores e inferiores extremamente finos. Era “pele e osso”, como se diz.

Sua única chance de cura era o transplante de fígado. Ocorre que, apesar da gravidade clínica, que nos levava a estimar em poucas semanas a sua sobrevida, os exames laboratoriais não espelhavam essa situação, e, consequentemente, sua posição na lista era desfavorável e nos dava a convicção de que ela morreria antes do transplante. Lembro que, ao tomar pé do caso, mandei uma fotografia de corpo inteiro para um especialista amigo, de São Paulo, como exemplo das imperfeições da lei que estabelece as prioridades na lista, ao tempo em que disse e ele que tentaria a qualquer custo viabilizar o transplante. Impressionado com o caso, o colega concordou, perguntando, todavia, se eu tinha mesmo coragem de transplantar paciente tão grave e desnutrida.

Fiz uma reunião com Wellingtânia e seus familiares, e informei que havia decidido lutar por ela. Seu marido e sua mãe, sempre muito presentes, encheram-se de esperança, aumentando minha responsabilidade e minha motivação. Mandei pedir à médica responsável por ela no hospital que fizesse um laudo mencionando a gravidade da situação para que eu pudesse caracterizar bem a necessidade urgente da cirurgia. Usaria o documento para instruir um pedido de prioridade especial ao Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Para minha surpresa, e decepção, a resposta da colega foi de que não daria o laudo, pois não concordava com “solicitações especiais nem ações na justiça” para pacientes em lista.

Sem o importante documento, mandei meu relatório para o SNT. A resposta veio três semanas depois, de forma lacônica: “indeferido”. Chamei Wellingtânia, que piorava a olhos vistos, e sua família, para dar a má notícia, mas, ao mesmo tempo, dizer que a luta continuava. Que iria ingressar na justiça. A ação foi rapidamente julgada, mas o juiz acompanhou a decisão do SNT.

Comuniquei à paciente e à família que havíamos perdido de novo, mas que iríamos apelar para o Tribunal de Justiça. A essa altura, eles beiravam o desespero. Na apelação, todavia, o desembargador Luís Carlos Figueiredo emite uma sentença que, no meu entender, coloca a lei a serviço da Justiça (e não a Justiça a serviço da lei, como fazia o SNT). Analisa o caso por uma ótica que valoriza aspectos filosóficos e valores humanitários não contemplados na legislação. Sua conclusão, aprovada por unanimidade pelos seus pares, é tão coerente que não coloca Wellingtânia em primeiro lugar na fila, com receio de preterir alguém ainda mais grave. Simplesmente manda lhe posicionar bem na lista, como se ela tivesse, por exemplo, um câncer no fígado.

Ao informar à paciente e aos seus familiares aquela decisão, explicando que agora ela tinha chances concretas, eles choraram de alegria. Havia, finalmente, uma luz no fim do túnel. Restava torcer e rezar para que ela resistisse até o dia da cirurgia.

No dia 30 de novembro de 2008, surge o doador de Wellingtânia. Apesar da sua fragilidade, tanto a cirurgia quanto o pós-operatório transcorrem sem complicações. Três meses após, seu aspecto físico já era completamente diferente. Toda a sua massa muscular se reconstituiu e, com isso, sua capacidade física, sua beleza e sua alegria de viver. Até os dias de hoje.

No ano seguinte, uma pessoa da nossa equipe informou que a mesma médica que se negara a dar um laudo a favor de Wellingtânia, na luta pelo transplante, agora mostrava o caso em aulas e palestras, com fotografias do antes e do depois. Indignada, a companheira perguntou se eu iria permitir aquilo. Respondi de pronto: “porque não?”. Logo depois, lembrei-me de um conselho do meu pai, Mario Lacerda, e acrescentei: “declare-a inexistente”.

Existentes são todos que ajudaram na luta para devolver a vida a Wellingtânia.

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