Duas cenas brasileiras

07-04-2009 Postado em Artigos por Luiz Carlos Figueirêdo

Og Fernandes
DESEMBARGADOR

José foi o quarto filho resultante da união entre a paternidade irresponsável e a maternidade precoce. Nasceu na periferia de uma cidade da zona metropolitana do Recife, quando o pai (que pai?) já desaparecera nas esquinas do Mundo. Tinha como lar (que lar?) um barraco, na verdade, um amontoado infecto de madeiras à beira de um mangue cheio de ratos, os substitutos dos bichos de pelúcia, brinquedos que José não conheceu.

A essa altura, a mãe de José esperava o quinto filho, aos 24 anos de idade. Fruto da sua nova união com um companheiro viciado em álcool, vadio e violento. Ela trabalhava para sustentar a todos. Afinal, gravidez é sinal de saúde. Saúde que José não possuía. Um exame médico constatou quadro de desnutrição em alto grau, escabiose e infecção tuberculosa, entre outros males mais complicados de compreender aos não iniciados na medicina.

Ao chegar das compras, a mãe de José encontra o filho chorando e com vômitos. O companheiro revela que havia dado um tapinha de nada na criança, que caiu da cadeira com a cabeça no chão. Providencia um remédio com a vizinha e somente se acalma quando o menor cai em sono profundo.

A mãe de José sai para o trabalho e quando retorna, dorme pesadamente. Sem tempo de notar que o filho morrera com apenas 1 anos e 9 meses de idade. A perícia constatou que “o tapinha de nada” causara perfuração da alça intestinal da criança. Mas o que doeu, doeu muito, foi saber que José ainda foi mordido por ratos durante o seu último e derradeiro sono.

E aí, entra o Estado-Autoridade para substituir ao seu modo aquilo que o Estado-Previdência não fez. A mãe de José é processada pelo crime de abandono material do filho – juntamente com o companheiro – sob a acusação de não ter prestado socorro eficiente ao filho. Ele é condenado a nove anos de cadeia e ela a seis anos. Ele, num gesto de confissão de culpa, não recorre da decisão, mas ela bate às portas do Tribunal, que reforma a sentença e absolve aquela mãe, tão vítima quanto José.

Fim da primeira cena.

Maria não conheceu pai e mãe. Quando deu por si e pelo mundo, estava numa instituição especializada em acolher crianças sem eira nem beira. Ali, há uma esperança ligando Maria ao seu futuro. Quem sabe, entre tantos meninos e meninas de histórias semelhantes, não encontre alguém que termine por adotá-la.

Aparece um estrangeiro então residente no Recife, que estende a mão e o coração a Maria. Os pais adotivos retornam ao país de origem e Maria virou Mary. Mary/Maria recebeu casa, carinho e comida. Estudou, formou-se e fez pós-graduação. Mary/Maria casou-se, tem filhos sadios, é professora universitária na sua segunda pátria. Ensina a jovens de outra nacionalidade aquilo que não pôde transmitir a brasileiros.

Fim da segunda cena.

Os fatos aqui narrados são verdadeiros. Apenas os nomes reais foram preservados. Não sei se José chegou a ter consciência da curta vida miserável que viveu. Tomara que não. Mas Mary/Maria, toda sentimento, não esqueceu o seu passado e acaba de remeter uma contribuição em dólarespara a instituição pernambucana que a acolheu.

Amparo, eis tudo o que diferenciou a sina de José da vida risonha de Mary/Maria. Assim, leitor, se você pode prestar assistência a um menor carente, não vacile. Auxilie. Se já pensou em adotar uma criança e ainda não fez por algum tipo de dúvida ou receio, reflita sobre essa dupla cena pernambucana. O futuro de um ou de vários menores pode estar ao alcance do seu gesto. Aja. Siga em frente. Pode ser que Mary/Maria jamais saiba da sua atitude. Mas em algum lugar do universo, José vai lhe agradecer.

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