Carta do meu pai: Profssão de Fé

16-04-2009 Postado em Notícias por Luiz Carlos Figueirêdo

Armando de Barros Figueirêdo
Juiz de Direito aposentado (Pernambuco)

Carta remetida ao seu filho, quando da aprovação deste em concurso público para ingresso na magistratura.

Luiz Carlos,

O fato de você desejar seguir a carreira de Juiz de Direito me faz muito feliz, mas, se a sua opção fosse outra, não me consideraria frustrado de modo algum.
O importante é fazer bem feito o que se faz e isso você vem fazendo. Os conselhos anteriores frutificaram.
Cedo você se apercebeu de que o sucesso de qualquer profissão só se consegue com honestidade, dedicação, responsabilidade, estudo e sacrifícios.
Na mesma linha de conduta, resolvi escrever esta mensagem, à guisa de estímulo, valendo-me da minha experiência como Juiz e como homem comum, que ao término da carreira não guarda dramas de consciência.
Chamar a sua atenção para a importância dessa opção é o meu dever e o faço com conhecimento de causa.
Desejo de todo coração que esta mensagem seja de otimismo e encorajamento, ao contrário daquela de Carlos Drumond de Andrade destinada a um neto, marcadamente pessimista, embora calcada numa realidade nua e crua.
Poderia encaminhá-lo diretamente às sábias palavras do Des. Thomaz Wanderley em ‘Exame de Consciência do Juiz’, complementada com ‘O Juiz e a Função Jurisdicional’, de Mário Guimarães, que ora lhe ofereço. Seria uma atitude apenas profissional, incompatível com o meu temperamento e com o diálogo franco que sempre imperou em nossa casa.
Sou daqueles que acreditam na justiça e que levou a sua função de Juiz mais a sério do que se possa imaginar. Exerci o cargo como missão, levando a sério as palavras de Moisés: ‘Não atentareis para pessoa alguma em juízo; ouvireis assim o pequeno como o grande. Não temereis a face de ninguém, porque o juízo é de Deus’.
Sou daqueles que crêem no homem apesar de tudo e de que, até certo ponto, moldamos o nosso destino.
De uma coisa esteja certo. Não é o título, a Faculdade de Direito, o resultado do concurso, nem os jurisdicionados que fazem o Juiz. É o próprio indivíduo quando se conscientiza da importância de sua função na sociedade. Daí, bons Juízes, maus Juízes e até antijuízes.
No momento existe uma verdadeira cruzada para aprimoramento da magistratura em nosso Estado. Tem havido uma seleção até certo ponto rigorosa e exigente. Obviamente, não é somente o aspecto intelectual que conta. Poderá ocorrer que novos Juízes, por isso ou por aquilo, não venham a ser o Juiz que se desejava.
Isso não invalida a cruzada. Sempre existirá ovelhas negras no meio do rebanho. O importante é reduzir o seu número, para que a sociedade possa acreditar e respeitar os que fazem a justiça. Isso é um trabalho de gerações e muito de nós já deram a sua contribuição. Sem falsa modéstia me coloco nesse meio.
Não fui só alimento … fui fermento.
Os títulos de cidadão de algumas cidades onde fui Juiz, placas de prata, referências, mensagens, etc., são os troféus de um homem fiel a si mesmo e ao seu cargo.
Vale ressaltar, e você sabe disso, que os obtive quando já não era o detentor do chicote, como se costuma dizer.
Mesmo com o perigo de parecer acaciano, lembro, por oportuno, as palavras de Rui Barbosa: ‘Recordai-vos, Juízes, que se sois levados acima do povo que vos corcunda, não é senão para ficardes mais expostos aos olhares de todos. Vós julgais a sua causa, mas ele julga a vossa justiça. E tal é a fortuna ou desventura de vossa condição, que não lhe podeis esconder nem a vossa virtude, nem os vossos defeitos’.
Como você vê, é quase um paradoxo. Somos julgados por aqueles a quem julgamos.
A nossa fortuna ou desventura vai mais além e começa em nossa própria casa. A partir do seu ingresso na magistratura, você será fichado em vários Departamentos do Tribunal de Justiça. Registros e anotações com respeito a remoção, férias, licenças, promoções, advertências, punições, etc., poderão ser encontradas nessas ficha. Apenas não registrarão os seus bons momentos de Juiz, sua capacidade de trabalho, seu equilíbrio na condução das coisas da justiça, etc.
Como não existe carteira de trabalho de magistrado, para tais anotações, você fica reduzido ao reconhecimento de uns poucos. Ao término da carreira, podemos ter apenas aqueles troféus de que falei anteriormente, referências aqui e ali e a consciência do dever cumprido. O respeito público é o bastante, e é disso que o Poder Judiciário necessita.
Alguém disse que as virtudes teologais do Juiz são: coragem, honestidade e cultura.
No decorrer de sua formação pelas cidades do interior, você vai verificar que isso se constitui numa verdade quase palpável. A cultura aprimora-se com o tempo e sua busca transcende aos livros exclusivamente de direito. É uma busca constante e jamais você encontrará a ponta do ‘fio de Ariadne’.
Muitas vezes, numa simples monografia médica, você encontra o elo indispensável à sua decisão. É uma pesquisa constante dentro e fora da realidade jurídico-social. Isso não nos torna infalíveis, mas amplia o nosso universo decisório.
Dadas as circunstancias, tenho as duas outras virtudes como mais importantes e necessárias.
De logo, diga-se, que são virtudes que não admitem parcelamento. Não existem graus na sua aferição. Você ou é honesto ou não é. Sucede quase o mesmo com a coragem.
O Juiz deve conduzir-se de maneira a servir de exemplo os seus jurisdicionados. Deve ter a necessária coragem para decidir não somente nos seus julgados, mas também nas decisões administrativas e normativas do dia a dia.
Não se exige do Juiz uma coragem cega e imprudente, exige-se sim, coragem disciplinada, com moderação e atos afirmativos alicerçados num comportamento moral inatacável. É uma virtude que deve ser temperada com o ‘bom senso’. Quando se toma uma decisão heróica, deve-se estar preparado para as suas conseqüências. Quando não se tem estofo moral para tanto, o melhor é não tentar.
Por tudo isso é que insisto nessas virtudes e numa visão maior de serenidade e equilíbrio.
Parodiado um dito já quase popular, aconselho: ‘Não faça do seu cargo uma arma’.
Logo de início você constata como é importante e poderoso no contexto geral de sua comarca. Não se engane. Você é poder desarmado e vulnerável, sob vários aspectos. Os homens do interior conhecem as coisas da justiça melhor que os cidadinos. De início vão testá-lo, na esperança de conseguir encontrar a sua fraqueza.
Entre muitas, destacam-se o ‘bom de copo’, o ‘bom de jogo’, o ‘bom de mulher’ e o ‘bom de vantagens’.
Evidentemente, qualquer uma dessas fraquezas acabam com o Juiz. Quando constatada e alimentada, alguém vai tirar proveito e outros vão sofrer as conseqüências. Há também os pedidos políticos para testar o grau de independência do Juiz. É bom não sucumbir ao primeiro ataque, pois outros se sucederão. Um Juiz político e faccioso é praga bem maior do que qualquer outra.
No trato com políticos todo o cuidado é pouco. Só conceda qualquer vantagem a um lado, quando seja possível estendê-la aos outros grupos. Enfim, faça as coisas de modo a não ter desejo de modificá-las no dia seguinte.
O importante é olhar o espelho no dia seguinte e não se envergonhar do homem que você é. Agindo assim, você pode olhar seus jurisdicionados de frente, com aquela autoconfiança que só os justos e os bons têm.
Dito isto, para que você não veja nas minhas advertências um excesso de zêlo paterno, transcrevo as sábias palavras de um grande Juiz, honra e glória da magistratura de Pernambuco, o Des. Thomaz Cirilo Wanderley, num opúsculo a que deu o nome de ‘Exame de consciência do Juiz’: ‘Estimulado pelo livro do padre L. J. Lebret e T. Suavet, RENOVAR O EXAME DA CONSCIÊNCIA, o juiz poderá examinar com real proveito, certos aspectos da sua vida, por vezes, abafados pela nuvem de poeira que se levanta ao longo caminho penoso a percorrer entre o montão de interesses confiados ao aplicador da lei, e o abismo da vaidade, da ambição, das seduções de toda espécie.
‘Considere-se, primeiramente, a função de Juiz. Ela é necessária, porque o mundo se degradou ao ponto de se tornar o teatro da injustiça. Tão necessária ela é, que todos os poderosos toleram, apenas toleram, porém, mesmo a contra-gosto, toleram a função de Juiz, disciplinada nas Constituições e nos Códigos.
‘Ela é a garantia da própria sociedade, cuja vida normal depende do equilíbrio entre os direitos e os deveres dos indivíduos entre si, e em relação à comunidade. Daí também a sua grande importância. Mas é contra indicada como fator de fortuna e de vida gozada, o que lhe denota o caráter de sobriedade capaz de polarizar-se em sacrifício.
‘Sob este aspecto, é salutar, para o Juiz, a renovação do seu exame de consciência. Mantém-se ele, à altura da grandeza e da importância da função de administrar justiça?
‘A resposta acertada não se pode fundar em razões puramente subjetivas, ditadas, quase sempre, pelo amor próprio ou, raramente, pela modéstia, sendo, por isso, duvidosas. Ela deve invocar motivos objetivos que se podem colher no próprio resultado da atuação do Juiz, no conjunto de manifestações conscientes de desinteressadas que ela naturalmente provoca. Em qualquer instância e em toda parte, o sujeito que mais é julgado é o Juiz. A sua atuação é satisfatória quando atende à lei e à verdade apurada, o que ressoa harmoniosamente no meio social, fortalecendo-lhe a confiança na justiça.
‘Poderá ser deficiente, por falta de aptidão ou de serenidade, falhas que minam o prestígio da autoridade judiciária entre os seus jurisdicionados. Deverá ser má, quando carecer de lastro de integridade, de independência, de imparcialidade, de bravura moral, que não se consolida sem o desprezo das seduções de ordem política, econômica ou moral.
‘Depois, vale relembrar a natureza e a dignidade da função judicante. Por mais importante que seja qualquer outra função do Estado, não lhe atinge o nível de poder e de dignidade.
‘Elaborar as leis e chefiar a administração pública, eis dois grandes poderes que Deus concede a alguns homens, por meio de um instrumento que, nas democracias, é a eleição popular.
‘Mas nenhum deles é maior, nem mesmo igual ao poder de julgar o comportamento do homem e resolver sobre os seus direitos. Julgar os seus semelhantes chega a ser temeridade definida no SERMÃO DA MONTANHA: ‘Não julgueis, se não quiserdes ser julgados’.
‘Todavia, a necessidade do julgamento impôs a instituição do poder oficial de julgar. Exerce-o o Estado através de órgão especializado, no qual todo mundo exige perfeição, tanto quanto humanamente possível.
‘Depositário de jóia tão preciosa como é a função de julgar, recomenda-se bem o Juiz que, vencendo o amor próprio, renova constantemente o seu exame de consciência, para verificar se realmente procedeu como deve proceder um Juiz.
‘Será necessário olhar para os fatos da vida particular? Quanto aos que chegam naturalmente ao conhecimento do povo, sim.
‘O homem que é Juiz tem obrigação de dar bom exemplo aos jurisdicionados. A sua conduta moral e as relações de ordem econômica devem ser inatacáveis. Ele deve ser respeitável, como homem, não bastando que seja respeitado, apenas por ser Juiz.
‘Respeito imposto é respeito artificial, hipócrita, ridículo. Na ausência, ele se converte em mofa. O mau comportamento do Juiz esmaga-lhe a autoridade e concorre para a degradação do meio social em que vive.
‘Na vida pública, isto é, no exercício da função judicante, cumpre nunca esquecer que o Juiz deve primar pela capacidade de renúncia e de sacrifício.
‘Renúncia de riquezas, de grandeza, de benefícios dos poderosos. Ele não trabalha para ganhar. O seu objetivo é trabalho da justiça, em benefício do povo. O ganho é simplesmente o meio de atingi-lo. Por isso, ele ganha para trabalhar. A sua função não existe para conquistar riquezas, mas sim para distribuir justiça.
‘Das grandezas da vida e dos benefícios dos poderosos ele se deve abster sem exitação, porque já está engrandecido e dignificado com o maior dos poderes que é o de julgar.
‘O sacrifício ao qual se deve sujeitar, começa por um dos maiores, que é o sacrifício da própria vontade, quando esta difere da verdade jurídica a ser proclamada.
‘Então surge o perigo de valer-se da inteligência rebelde à razão, para torcer a prova ou a lei e chegar à solução preconcebida e falsa, o que importaria em traição. E, nesse transe, é indispensável que a independência e a integridade sejam mesmo reais e façam desaparecer o homem com todo o seu orgulho e sua vaidade, para que o Juiz não deserte. Para tanto, é necessário que ele se mantenha, em tudo, à altura do cargo; que se identifique com os deveres impostos na lei, muito mais do que com os direitos que ela lhe assegura. Estes têm a marca do egoísmo; aqueles devem ter somente a da justiça.
‘Diante de tanta responsabilidade, o exame de consciência é medida salutar que não deve ser esquecida nem evitada. Todo homem é naturalmente sujeito a cair em erro. E tanto mais o é, quanto maior for a soma dos poderes que exerce.
‘Mas, conhecido o erro, desculpa não há para a reincidência. E, para conhecê-lo, é preciso lançar um olhar para dentro de si mesmo, e rever, sem nenhuma preocupação de autodefesa, os atos praticados, submetendo-os mais uma vez ao veredicto inapelável da consciência.
‘Tal julgamento há de produzir um benfazejo e poderoso estímulo para a emenda, sempre que falhar a causa de uma tranqüilidade sincera.’
Creio que é o bastante. Faça sua opção com o coração e com a razão. Há tempo para tudo, meu filho, até para calar, mas de uma coisa esteja certo: Os homens passam e justiça permanece na sua eterna majestade. Permanece, também, a memória daqueles que souberam dignificar a função judicante, como o grande Juiz Thomaz Cirilo Wanderley.
Com um abraço, do pai e amigo.
Olinda, outubro de 1982.

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