Processo nº 197027845-5
Sentença nº 094/03/98 – LCBF
Vistos, etc…
C. da S. B., menor impúbere de 1 ano e 4 meses, através de Advogados do Centro de Assistência Judiciária de Defesa da Criança e do Adolescente, requereu Ação de Suprimento de Consentimento contra seus pais Paulo Gomes Barbosa e Clarice Francisca da Silva Barbosa, sendo representada, de fato, na formulação do pedido, por Graciete Maria Pereira, Assistente Social do Hospital da Restauração, CRES 1777, pleiteando fosse esta nomeada sua curadora especial, fundamentando seus pedidos nos artigos 7º, 15 e 142 parágrafo único do Estatuto e nos seguintes argumentos fáticos e jurídicos:
a) A criança C se encontrava hospitalizada no Hospital da Restauração, com diagnóstico de BCP + Pneumotórax à direita + anemia grave, estando na UTI; tendo sido comunicado pelo serviço médico do hospital que acompanhava a criança a necessidade provável de uma transfusão de sangue, e sendo os genitores adeptos da religião Testemunhas de Jeová, de conhecida postura contrária à prática médica recomendada à criança, não aceitaram a possibilidade da menina receber sangue de forma alguma;
b) Que ela, criança, tem, por previsão constitucional, direito à vida, este reiterado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, não cabendo a ninguém negar-lhe isto.
Foi juntado à inicial documento de fls. 04/07.
No despacho inicial deferi o 1º requerimento, designando como curadora especial da C. da S. B a pessoa indicada na vestibular, apenas no que pertine às decisões relativas ao tratamento médico a que se submetia no Hospital da Restauração;
Autorizei ainda que se procedesse a tantas quantas fossem as transfusões necessárias, sempre que, a critério médico, houvesse risco iminente de vida, pelas razões expendidas às fls, e também porque nos documentos instrutório já se comprovava que antes mesmo da liminar já havia ocorrido uma transfusão (com expedição de mandado).
Efetivada a medida, procedeu-se à citação dos genitores para contestar, querendo, no prazo legal, advertidos dos efeitos da revelia.
Os réus contestaram a ação, salientando que “as Testemunhas de Jeová não se opõem ao tratamento médico, tampouco crêem em qualquer tipo de cura pela fé, nem a praticam, nem desejam que seus filhos se tornem mártires”.
Relatam que a criança vinha sendo submetida a tratamento médico com a Dra. C. ª no Hospital De Ávila, sendo submetida a tratamento alternativo, isto é, sem transfusão de sangue, estando o referido tratamento surtindo efeito, sendo, porém obrigados a transferir a criança para a rede pública hospitalar por motivos financeiros, indo a mesma a ser internada no Hospital da Restauração, mas os pais da menor forneceram os remédios para dar continuidade ao tratamento alternativo, tendo aquela equipe médica optado pela transfusão mesmo sem autorização dos contestantes.
Requereram, diante da incerteza sobre quantas transfusões de sangue a menor C. recebeu, fosse oficiada aquela unidade de saúde, a fim de informar o número exato das referidas transfusões, bem como cópia do prontuário médico com relação à filha do casal, requerendo ainda a extinção da presente, sem julgamento do mérito, ou assim não entendendo, que seja julgado totalmente improcedente a presente demanda; juntando documentos de fls. 26/35.
Expedi ofício ao Hospital solicitando as informações pleiteadas pelos requeridos.
A Representante do Ministério Público emitiu parecer opinando pela extinção do feito, com a declaração da subsistência da liminar concedida.
Relatei e decido:
Inexistem preliminares para apreciação. Data máxima vênia, não se trata nem de simplesmente se julgar subsistente a liminar concedida e, muito menos de se dizer que o objeto da ação se encontra prejudicado, pois a liminar foi satisfativa. Os argumentos estão postos devidamente e cabe ao “Estado Juiz” dizer o direito, sendo então a pretensão procedente ou improcedente.
Dizer-se sem objeto pode até atender aos interesses do advogado, que continuará tendo em aberto a questão para futuros embates, sem que o Judiciário nunca tenha se pronunciado sobre o mérito da questão, mas não atende aos interesses da sociedade, que precisa saber qual é a atitude mais correta a ser adotada para o problema e não se adeqüa aos primados do papel do Judiciário em um estado de direito, que precisa atuar eficazmente, sem ficar lavando as mãos como Pôncio Pilatos. Da mesma maneira que foi meu o dilema de conceder ou negar a liminar, é do advogado o seguinte dilema: se a sentença for procedente e não apelar, esta atitude pode ser entendida como concordância com o seu conteúdo, mesmo que a causa do não oferecimento do recurso seja a executoriedade da liminar, criando problemas para defender a tese em futuros processos; se apelar e o Tribunal manter a sentença, cada vez mais ficará difícil sustentar o posicionamento contra a transfusão. Se simplesmente julgar subsistente a liminar, não se aprofundará a questão sobre a legitimidade ou não da intervenção médica contra a vontade do paciente ou seus familiares.
A meu ver, os argumentos que apresentei na letra “a” do despacho liminar de fls. 08 abaixo transcritos são bastantes e suficientes para se definir a priorização do direito à vida assegurado constitucionalmente. (Como se observa dos anexos, a criança já se submeteu a uma transfusão. Por isto é que os níveis de hemoglobina subiram a quase o dobro. Tenho o maior respeito à fé professada por qualquer pessoa e aos dogmas dela decorrentes, mesmo que com eles não concorde. O código de ética médica já resolve a questão quando autoriza ao médico atuar contra a vontade do paciente ou seus parentes, na hipótese de iminente risco de vida. O direito à vida é assegurado constitucionalmente e legalmente, sendo indisponível). No caso concreto, este direito está em conflito com outra disciplina constitucional que é a liberdade religiosa. Em conflito, como no caso concreto, qual dos dois deve preponderar? É imaginável que uma criança de um ano e quatro meses deixe de receber o tratamento que os médicos recomendam apenas porque este vem em contrário às convicções religiosas dos seus pais?
Momentos antes do ajuizamento, o advogado dos réus, profissional exemplar, por quem tenho a maior estima e respeito, esteve em meu gabinete pedindo a não concessão da liminar, posto que as taxas haviam dobrado em curto espaço de tempo, demonstrando a desnecessidade da transfusão. Ao receber a exordial, logo descobri porque as taxas dobraram. Já haviam transfundindo o sangue antes mesmo da liminar (não é que quisessem a liminar para legalizar seu proceder, pois, como apontei no despacho inicial, não precisavam de ordem judicial para tal, à luz do código de ética médica, e sim de uma prova cabal da urgência do caso).
A sentença trazida à colação não se aplica ao caso concreto como paradigma, pelo simples fato de que não se trata agora de pessoa maior e capaz. Ainda que o fosse, data vênia, está técnica e juridicamente errada, não se embasando nas regras em vigor, e sim em valores pessoais do magistrado prolator. (Por exemplo, no meu caso pessoal, abomino o aborto, por fortes convicções morais, éticas e religiosas, mas não poderia me negar a autorizar a sua realização se o caso se enquadrasse em uma das 2 hipóteses legalmente permitidas. Entretanto, penso que caberia indeferir pedido por anencefalia – que muitos magistrados têm deferido, também por convicções pessoais – , já que não há previsão legal para tal).
Ao enveredar pelo questionamento das razões médicas que presidiram a decisão de transfusão, a defesa se perde completamente. Seus questionamentos poderiam ser extrapolados – se válidos fossem – a todos os ramos profissionais, como por exemplo: por que extrair um dente e não obturá-lo? Por que demolir um imóvel e não recuperá-lo? Etc. o profissional é habilitado, experiente, sujeito às regras de ética e de fiscalização de sua profissão. Se cabe perguntar quem é o médico para decidir pela transfusão, obviamente será possível a questão “quem é o advogado para questionar a decisão do médico em faze-lo, salvo se embasado em outro parecer médico?”
A solução para o problema passa por uma ação dos adeptos de tal religião, treinando hospitais, médicos, enfermeiros etc. para que TENHAM ARGUMENTOS TÉCNICOS CIENTÍFICOS, EM CADA CASO CONCRETO, CAPAZES DE SE CONTRAPOR ÀS DELIBERAÇÕES MÉDICAS DA TRANSFUSÃO.
A questão da nomeação de curador especial não foi questionada, além do que totalmente embasada em lei, ante a evidente colisão de interesses entre a criança e seus pais.
Deferi o fornecimento de informações requerido, por entender que o direito constitucional de informação a respeito de sua pessoa (ou representado) não pode ser sonegado.
Obedecidas foram as formalidades legais, o pedido está de acordo com o direito e conta com a anuência do Ministério Público.
Ante o exposto, com arrimo nos artigos 8º, 9º, I, 796 a 798 do CPC, c/c 7º , 15, 98, 142 parágrafo único e 148 parágrafo único , letra “f” da lei nº 8.069/90 e 5º, 7º, 84 e 387 do Código Civil e no Código de Ético médica, julgo procedente o pedido da exordial, declarando legítima a intervenção médica com transfusão de sangue, mesmo contra a vontade dos pais, por razões religiosas, em caso de grave risco de vida, convalidando a liminar antes concedida e a nomeação do curador especial; suprindo assim o consentimento dos pais.
Ciência à curadora especial nomeada e ao Hospital.
Sem custas, ex-vi do art. 141, parágrafo 2º.
PRI, em segredo de Justiça
Recife, 02 de março de 1998
Juiz de Direito da 2ª Vara da Infância e da Juventude da capital
a) Luiz Carlos de Barros Figueirêdo.