Sentença 04/02/2003 – LCBF

16-04-2009 Postado em Sentenças por Luiz Carlos Figueirêdo

Processo: 2000.006102-7
Requerente: Ministério Público
Requeridos: Rosilene Alves da Silva e Severino Laurindo da Mota

Sentença 04/02/2003 – LCBF

Vistos etc

O MINISTÉRIO PÚBLICO, por sua representante legal, ingressou com AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DE PÁTRIO PODER contra ROSILENE ALVES DA SILVA e SEVERINO LAURINDO DA MOTA, em favor de seu filho LUÍS FERNANDO ALVES DA SILVA, aduzindo, na oportunidade, que:
A criança foi abrigada na Instituição Casa dos Amigos como medida de proteção, tendo sido encontrada na rua, na companhia de sua avó materna, juntamente com outras crianças, chorando “com fome no sol quente”.
Alega, ainda, que Luís Fernando recebe visitas de sua genitora, mas a mesma não possui interesse em tê-lo de volta ao convívio familiar, mas que sua avó paterna apresentou grande interesse em ter Luís sob sua guarda.
Pede, enfim, o órgão ministerial a procedência do pedido com fulcro nos art. 22, 24, e 169 da lei 8.069/90 c/c o artigo art. 395, II, do CC de 1916.

Juntou documentos de fls. 05/08.

Procedeu-se a citação editalícia e pessoal dos genitores concomitantemente. Houve contestação, às fls. 23/25, na qual os genitores afirmaram inexistir prova de abandono e maus tratos ao infante Luís Fernando. Alegaram viver em grande estado de pobreza, mas que a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio poder. Outrossim, afirmaram fazer visitas à criança todas as quartas-feiras no Abrigo-Escola Casa dos Amigos. Apresentaram rol de testemunhas (fls. 25). Requereram que a criança fosse entregue aos seus avós paternos, os quais, segundo relataram, demonstram interesse em ingressar com Ação de Guarda em favor Luís Fernando. Juntaram documentos de fls. 26/28.
Dilação probatória consistente na oitiva das testemunhas arroladas pela acusação, bem como a avó paterna da criança, Sra. DILEUZA ESPINDOLA DE MELO, a qual demonstrou interesse em ingressar com a guarda do infante, tendo inclusive a anuência dos Réus (fls. 40).
Audiência para a oitiva das testemunhas dos Réus às fls. 67, na qual foi novamente ouvida a Sra. Dileuza Espíndola, a qual afirmou que seu filho, Sr. SEVERINO LAURINDO DA MOTA, havia falecido, mas em sua certidão de óbito consta o nome de outrem que não o de seu filho, não tendo ainda providenciado a sua devida retificação. Relatou, ainda, que a genitora de Luís, Sra. ROSILENE ALVES DA SILVA, desapareceu sem haver deixado qualquer paradeiro. Por fim, afirmou que a criança já se encontra sob sua guarda, concedida em termos provisórios, nos autos da Ação de Guarda por ela movida, Proc. nº 2002.015261-2.
Determinada a apresentação de alegações finais (fls. 54), a Defensora Pública, através de cota nos autos afirmou que deixaria de apresentar as alegações finais, face a situação demonstrada pela Ação de Guarda – Proc. nº 2002.015261-3, requerida pela avó paterna de Luís, a Sra. Dileuza Espíndola.
O Ministério Público pugnou pela procedência do pedido em relação a ré, aduzindo que o réu faleceu, com fulcro nos arts. 395, II do CC, c/c os arts. 22, 24 e 169 do ECA.
Autos conclusos para sentença, às fls. 69.
É o relatório.
Passo a decidir.
Embora inexistam preliminares processuais para apreciação, fatos supervenientes impõem que sejam previamente analisados, até porque, teoricamente, poderiam ser prejudiciais à apreciação do mérito do pedido.
A primeira questão a ser resolvida neste caso, onde o direito material é de natureza simples, diz respeito a um problema de “nomem juris”, pois apesar de se denominar simplesmente de “ adoção” e de haver sido distribuída como “ adoção nacional – menor sob guarda fática”, salta aos olhos que se trata de um pedido cumulado de Adoção cumulado com Decretação de Perda de Pátrio Poder, pois os pais não anuem ao pedido, implicando na necessidade de contraditório, no tocante a este aspecto. alizada
Com efeito em 11 de janeiro de 2003 entrou em vigência o Novo Código Civil Brasileiro, no qual constam disposições expressas sobre a perda do poder familiar ( equivalente à destituição do pátrio poder do Código Civil revogado), devendo a sentença se pronunciar a respeito de suas implicações em cada caso concreto.
Em primeiro plano é de se dizer que tratando-se de norma sobre direito material toda a orientação doutrinária e jurisprudencial é no sentido da aplicabilidade da Lei à época do ajuizamento (o que seria diametramente oposto, a caso se tratasse de norma processual), ressalvado a aplicação de eventual dispositivo novo que beneficie a todas as partes envolvidas, sem causar prejuízo a qualquer delas, ou quando expressamente estabelecido na novel norma.
Não bastasse isso, em uma primeira abordagem, apenas se cotejando os arts. 395, II, do Código velho e o art. 1.638, II do Código Civil Novo, facilmente se chega à conclusão que ambos dispõem de forma absolutamente idêntica, prevendo a mesma sanção para a mesma falta, embora tenha ocorrido a modificação terminológica a qual antes aludi.
Se neste caso concreto os argumentos supra já seriam suficientes para adentrar-me ao mérito, penso ser relevante a análise do outro fundamento do pedido (arts. 22/24, ECA), fixando entendimento específico sobre tal fundamentação, pois as implicações legais são bem mais complexas, inclusive para futuras ações a serem ajuizadas, no mínimo porque é dever do juiz se pronunciar sobre todos os pontos articulados pelas partes, para dizer de sua aplicabilidade ou não ao caso concreto. É que o ECA fala em “descumprimento injustificado dos deveres do pátrio poder”, enquanto que o Novo Código Civil se vale no art. 1.638 da expressão “incidir, reiteiradamente nas faltas previstas no artigo antecedente”, dentre as quais se inclui o descumprimento de deveres do exercício do poder familiar.
Além do equívoco grosseiro do art. 1.637 CC, que limitou a legitimação ativa ao MP e a “algum parente” caracterizando enorme retrocesso frente ao ECA que fala em “quem detenha legítimo interesse”, tema que não cabe aprofundar neste “decisum”, posto que esta ação foi ajuizada pelo “Parquet”, salta aos olhos que a previsão do ECA é bem mais abrangente e adequada que a do novo Código Civil. Como exemplo desta afirmativa, basta se ver que uma mãe desempregada sem apoio familiar, do Poder Público ou da comunidade, que por ventura não tenha alimentado seus filhos nas 03 refeições diárias poderia ser acusada de reiterar no descumprimento do poder familiar, enquanto que à luz do ECA tal fato jamais seria punível, na medida em que sua falta seria tido como justificada. Não fosse assim, prevaleceria o adagio popular: “por cima da queda ( a pobreza), coice” (a perda do poder familiar em razão da pobreza).
Considerando que o § 1º do art. 2º da LICC diz que “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declara, quando seja com ela incompatível ou quando regula inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (grifei!) além do Princípio da Hierarquia das Leis (CC = Lei Complementar; ECA = Lei Ordinária) gera-se, aparentemente, a idéia da prevalência da norma nova, apesar do flagrante prejuízo causado às crianças e adolescentes.
Seria o caso de se indagar se esta interpretação ora construída não é rigorosa em excesso, na medida em que, em tese, ambas as expressões buscam proteger os interesses das crianças, que o caso materializa um conflito aparente de normas, ou que seria possível uma interpretação harmônica entre os dois (02) conceitos, tomando por base o § 2º do art. 2º da LICC que disciplina: “A lei nova, que estabelece disposições gerais ou especiais a par dos já existentes não revoga nem modifica a lei anterior”
Cuido que não, infelizmente. Como primeiro argumento é de se aduzir que o Novo Código Civil regula inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (embora com troca de nomenclatura) ao definir “numero clasus” as hipóteses taxativas ensejadoras da perda do poder familiar (em outras palavras, ninguém pode perder o poder familiar senão pelas expressas razões contidas na norma). Em segundo porque o Código Civil revogado contemplava apenas 3 (três) hipóteses justificadoras da perda do pátrio poder, todas elas repetidas no Código Novo; terceiro que o descumprimento injustificado do pátrio poder como causa de sua perda foi inovação do ECA e o inciso IV do art.1638 visa diretamente a sua substituição (ainda que não tenha sido incluído como caso de revogação expressa no art. 2045 do Novo CC); quarto que as normas processuais do ECA sobre perda do pátrio poder continuam plenamente aplicáveis para os novos pedidos de perda do poder familiar; quinto que sendo real, como visto, o conflito, e não meramente aparente, não há como harmonizar a interpretação para que ambas as expressões possam conviver, concomitantemente (que me desculpem a redundância, que visa apenas dar ênfase à circunstância), pois a conduta injustificada nunca precisará de ser repetida para ser punível, bem como não cabe ao interprete, conforme o caso, ora fazer uso de uma, ora de outra norma, conforme lhe pareça mais conveniente.
É importante, ainda, referenciar que, ao meu ver, a saída do ordenamento jurídico do referido inciso IV do art. 1638 N.C.C. não geraria os efeitos do art. 2º, § 3º da LICC (“salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei restauradora perdido a vigência”), até porque não houve revogação expressa dos art. 22 e 24 do ECA, de sorte que se o obstáculo referenciado for superado, restará ele plenamente intacto, e, com isto, melhor protegidas as nossas crianças e adolescentes.
Para que não prevaleça a injustiça, cuido que o remédio teórico é se invocar a teoria garantista do grande jurista italiano Luigi Ferragiolli, através da qual, sem abandonar a Teoria Piramidal de Kelsen, o prevalente tem que ser os princípios fundamentais constitucionais.
Neste contexto é que surgem os seguintes argumentos: a) A substituição da expressão “descumprimento injustificado” por “reiteiradamente” ofende o Princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (arts. 1º, III, CF); o objetivo fundamental de “ erradicar a pobreza e a marginalização” e de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 2º, III, IV, CF); “prevalência dos direitos humanos” (art. 4º, II, CF); além da cláusula mater do art. 5º, CF de igualdade de todos perante a lei , pois é abominável que alguém possa, em tese, sofrer qualquer tipo de sanção legal apenas em razão de sua hiposuficiência econômica; b) Da mesma forma ofende ao Direito Constitucional da convivência familiar e comunitária pois, pelos mesmos fundamentos anteriores, a nova expressão pode, em tese, justificar a retirada de tal convivência sem justa causa; c) O princípio da prioridade absoluta para os direitos da criança e do adolescente (primazia entre todas as primazias constitucionais) contido no art. 227, CF, trazido da doutrina da proteção integral da ONU, sobre o qual já tive oportunidade de me pronunciar em texto doutrinário, defendendo ser ele cláusula pétrea da Constituição, também restou ofendido, pois salta aos olhos que a aplicação da nova expressão em detrimento da antiga pode causar flagrantes prejuízos aos seus direitos.
De tudo isso, resta que a nova norma é pior redigida que o ECA, prejudica as crianças, ofende a Constituição e o remédio constitucional para justificar a aplicação do ECA é o do controle difuso da constitucionalidade, o que faço agora, por via incidental, portanto aplicável exclusivamente “inter partes”, para, no exercício da função jurisdicional, negar-me a aplicar a Lei de menor hierarquia (inciso IV do art. 1.638 do Novo Código Civil), por se chocar com a CF, ao superior posicionamento no ordenamento do Estado, ressalvando que, apesar de não aplicada, continua ela no rol da legislação em vigor, pois não houve sua derrogação, que é função política que não compete ao magistrado no exercício da função jurisdicional . Via de conseqüência, declaro aplicável à espécie a regra ínsita nos arts. 22 e 24 da Lei nº8.069/90, que não foram revogadas pelo Novo Código Civil.
Superadas estas questões principiológicas resultantes da vigência do Novo Código Civil, passo a analisar a questão a ser deslindada:

O art. 19 do E.C.A dispõe que toda criança tem direito a crescer no seio de sua família natural, cabendo aos pais, de acordo com o art. 22 do mesmo diploma, o dever de guarda, sustento e educação dos filhos. Sobre isso, José Antônio de Paula Santos ( 1994:108) comenta:
“ O dever de educar implica no atendimento das necessidades intelectuais e morais do menor, propiciando-lhe a oportunidade de se desenvolver nesses níveis. Enquanto isso, o encargo de criar abarca a obrigação de garantir o bem-estar físico do filho, proporcionando-lhe sustento resguardando-se a saúde e garantindo-lhe o necessário para a sobrevivência. ”
No caso em tela, é notório o descaso dos genitores com relação ao seu filho, no tocante aos deveres inerentes ao poder familiar. Restou provado nos autos que a Requerida desistiu de provar sua inocência quanto às acusações apontadas na inicial, pois, simplesmente depareceu sem paradeiro, logo em seguida à alegada morte de seu companheiro, Sr. Severino Laurindo da Mota, genitor de Luis Fernando e Réu na presente ação. Restou, assim, como referência familiar os avós paternos do infante, em especial a Sra. Dileuza Espíndola de Melo, a qual já ingressou em juízo requerendo a Guarda de Luís Fernando, bem como de seu irmão mais novo, Allyson Guilherme.
Segundo relatório do Abrigo – Escola Casa dos Amigo, instituição que abrigou inicialmente a criança, a genitora (embora lhe fizesse visitas) não demonstrou interesse em tê-lo consigo, alegando falta de condições financeiras, mas que a mesma gostaria que a avó paterna da criança assumisse sua guarda.
A conjuntura fática apontada nos autos é clara quanto à inaptidão para o exercício do poder familiar incumbido à Sra. ROSILIENE ALVES DA SILVA, autorizando a sua perda, segundo a própria inteligência do art. 1638, inc. II, do Novo Código Civil, repetindo o conceito do art. 395, II, do Código revogado, quando disciplina:

“Art. 1638- Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I…..
II – deixar o filho em abandono;
III…….”

Acerca da hipótese do abandono, Silvio Rodrigues argumenta:
“ O abandono pode assumir feições materiais e psicológicas. Em qualquer desses casos se caracteriza como elemento desencadeador da destituição de pátrio poder”

“O abandono não é apenas o ato de deixar o filho sem assistência material fora do lar. Mas, o descaso intencional pela sua criação, educação e moralidade.”
Baseado no citações doutrinárias acima mencionadas e tendo em conta os dispositivos legais, não remanesce dúvida acerca da conduta desidiosa da mãe em relação aos deveres que tem para com o filho, onde se vislumbra, de maneira clara, não só privação de aspectos materiais, como também, e, principalmente, comprometimento da própria formação do menino enquanto ser humano, pois dificilmente este arraigará conceitos sólidos sobre família.
Assim demostrado o abandono pela genitora, havendo total desinteresse por parte de outros familiares, exceto a avó paterna, em assumirem a criação da referida criança, não há o que esperar da família natural de LUÍS FERNANDO, sendo imperiosa a decretação da perda do pátrio poder com relação à sua genitora.
Embora possa parecer surrealista , tanto que nem reafirmado nas alegações finais do “Parquet”, faz-se necessário, também, que se decrete a perda do pátrio poder em relação ao pai, em que pese tudo indique que o divino criador já providenciou a hipótese legal de sua extinção (pela morte) em relação à sua pessoa. É que segundo a Lei nº6.015/73, o registro de óbito tem presunção “juris tantum” e, não tendo ele ainda sido lavrado, é irrelevante o depoimento da genitora do réu para provar o seu falecimento.
Isto posto, JULGO PROCEDENTE o pedido da inicial, com fulcro nos art. 22, 24, 155 e seg. e 169 da Lei 8.069/90 c/c o art. 395, II, do CC de 1916 e, por conseqüência, DECRETO A PERDA DO PÁTRIO PODER de ROSILENE ALVES DA SILVA e SEVERINO LAURINDO DA MOTA (supostamente falecido), em relação a seu filho LUÍS FERNANDO ALVES DA SILVA. Transitada em julgado a sentença, expeça-se mandado de averbação para o Distrito Judiciário no qual a criança foi registrada (15ª Zona Judiciária da Capital) para os fins do art. 163 do E.C.A. Deixo de determinar a sua inclusão no cadastro de crianças adotáveis, em razão de se encontrar sob a guarda da avó paterna, com processo judicial em tramitação.
Sem custas, ex-vi do art.141, §2º, ECA.
P.R.I.

Recife, 06 de fevereiro de 2003.

Juiz de Direito

Nenhum comentário

Deixe seu comentário. Seu e-mail não será revelado.