Luiz Carlos de Barros Figueirêdo et alii*
Em que pese o cuidadoso e bem-elaborado documento – “Implicações Éticas da Triagem Sorológica do HIV” – realizado pelo Programa Nacional de Controle das Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS (PNC-DST/AIDS), abordando a triagem sorológica do HIV em diversos segmentos da sociedade, alguns pontos nele contidos parecem relevantes, sobretudo aqueles referentes a processos de adoção, sobre os quais se pretende tecer alguns comentários.
No Cap. VII, que trata especificamente do assunto em tela, o documento considera “o número imenso de crianças carentes a serem adotadas”, bem como “requisições de exames solicitados por adotantes”, entendendo a existência dessas duas realidades. Entretanto, afirma posição contrária à triagem sorológica do HIV nesses casos, justificando-se pelo possível uso discriminatório que possa ser feito em relação às crianças/adolescentes soropositivas, o que levaria ou ao impedimento dessas adoções ou ao abrigamento das referidas crianças/adolescentes em “locais inadequados” ao seu desenvolvimento.
Os profissionais que integram a 2ª Vara da Infância e da Juventude do recife, que cotidianamente têm contato querem com as Instituições que abrigam tais crianças/adolescentes, quer com a realidade social destas, quer com os pretendentes a tê-las em um lar substituto, apresentam algumas considerações que parecem também merecer análise aprofundada, com o intuito de que possam contribuir para ampliar esta discussão urgente e necessária.
Primeiramente, vale lembrar que grande parte destas crianças/adolescentes são geradas e/ou criadas em condições ambientais bastante inadequadas, sobretudo de ordem familiar, onde os genitores, em sua maioria, são promíscuos sexualmente, quando não usuários de drogas e alcoólatras. Em adição, condições sócio-econômicas extremamente precárias também levam à fragmentação familiar, resultando, desta realidade, crianças/adolescentes abandonadas, muitas desde a tenra idade, ou então, vítimas de maus-tratos ou mesmo desleixo.
Em paralelo, há também que se considerar a situação dessas crianças/adolescentes nas instituições que as abrigam, onde, não obstante todos os esforços de profissionais e funcionários no sentido de lhes oferecer um ambiente adequado e propiciador do desenvolvimento de suas potencialidades, inevitavelmente, a partir de uma determinada faixa etária, ocorrem contatos sexuais tanto com crianças/adolescentes do sexo oposto quanto do mesmo sexo. Muitas vezes as crianças e adolescentes abrigados já trazem para as instituições vivências de rua, inclusive experiências sexuais, o que as torna vulneráveis e, portanto, necessitadas de acompanhamento.
Por sua vez, no que diz respeito aos adotantes, ainda que lhes seja totalmente vetada a permissão para, previamente, escolher as crianças/adolescentes em seus locais de abrigo, há, através de um requerimento de Inscrição, liberdade para que nesse documento indiquem as características das crianças pretendidas (faixa etária, sexo, se há restrição à saúde física e mental etc.). Embora se busque, por princípio, escolher a melhor família para aquela criança e não o contrário, não se pode, no entanto, deixar de lado a responsabilidade assumida perante estas famílias no sentido de lhes assegurar as condições adequadas ao seu pleito. Mesmo porque, considerando prioritariamente a criança/adolescente, a não garantia destas condições reverterá negativamente para os adotandos, que poderão vir a ser rejeitados em seus lares substitutos, quando não devolvidos Às instituições de origem, ou pior ainda, no caso de adoção por estrangeiros, abandonadas nas instituições desses países. É preciso registrar que riscos de rejeição precisam ser administrados constantemente pela equipe da Justiça da Infância e da Juventude, pois não se revela apenas em casos de soropositividade, mas também em outros de menor monta, como doenças curáveis, empatia, comportamento do adotando etc.
O próprio documento elaborado pelo PNC-DST/AIDS, parece atento à dificuldade de generalizar posicionamentos contrários à triagem sorológica do HIV, em todos os casos, quando deixa em aberto algumas questões. Por exemplo, no capítulo V, que trata da triagem sorológica de HIV, no pré-natal ou pré-nupcial observa que “o diagnóstico precoce de infecção pelo HIV viabilizará no pré-natal a identificação das pessoas que poderão se beneficiar da terapêutica disponível e permitirá o aconselhamento adequado. A crescente demanda de mulheres portadoras do HIV e a conseqüente transmissão para os seus filhos justifica o oferecimento do teste” (p.20). Da mesma forma, em seu capítulo VI – triagem Sorológica do MV em Creches e Escolas –, retomando os direitos preservados na Constituição da República Federativa do Brasil, o art. 227 estipula como “dever da família, da sociedade e do estado, garantir à criança e ao adolescente, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação…”. Enquanto que neste mesmo capítulo trazem casuística de crianças/adolescentes discriminadas em creches e escolas, quando do diagnóstico da soropositividade, no capítulo VII, que desloca esta questão para os casos de adoção, não apontam para nenhuma estatística que pudesse exemplificar condutas discriminatórias devido à triagem sorológica do HIV.
A equipe desta 2ª Vara, nos dois únicos casos encontrados de crianças/adolescentes disponíveis para a colocação em família substituta de portadores do vírus HIV, de julho de 1992 até agora, quando se promoveu quase 150adoções, das quais cerca de 50% para adotantes estrangeiros, acompanhou duas situações que parece pertinente relacionar: a de um adolescente de 12 anos adotado por um casal estrangeiro, cuja descoberta da soropositividade de seu no país de origem do casal, 10 dias após a adoção ter sido realizada; e a outra, de irmãos gêmeos, univitelinos, com 1 ano e 7 meses, sendo no primeiro laudo um negativado e outro positivado, este foi retestado por mais 3 vezes, sendo 2 diagnósticos inconclusivos e o terceiro negativo igual ao do irmão. No primeiro caso, o casal, extremamente maduro, não só aceitou e acolheu plenamente o adolescente, como também se dispôs a tratá-lo de forma a lhe permitir uma maior sobrevida e uma maior qualidade de vida. Ainda assim, como haviam colocado na ficha de inscrição que tinham restrições a receber crianças com problemas físicos e/ou mentais severos ou irreversíveis, o casal manifestou seu desagrado com o fato, entendendo que houve irresponsabilidade por parte da Justiça brasileira ao não fazer o teste previamente. Pergunta-se: e se o casal tivesse devolvido o adolescente? Esta rejeição não teria conseqüências bem maiores do que a constatação e manutenção do adolescente no abrigo original com um acompanhamento ou encaminhamento a uma entidade apropriada? Do ponto de vista do casal adotante, não houve uma injustiça para quem esperou tantos anos por um filho? A mesma atitude madura foi encontrada em uma senhora médica, francesa, que se dispôs a adotar as crianças do 2º caso, quando as mesmas já haviam sido rejeitadas por outros 2(dois) casais, ainda quando o diagnóstico de soropositividade era inconclusivo para um deles, assumindo os riscos de sua decisão e podendo, desta forma, cerca-los dos cuidados necessários a um desenvolvimento o mais saudável possível.
Em várias situações o documento enfatiza a triagem indiscriminada para seleção e a questão do direito ao sigilo nos casos em que a soropositividade é diagnosticada para justificar sua posição contrária à triagem sorológica do HIV. Entretanto, não parece, em momento algum, que esta equipe adota a posição de requerer triagem sorológica do HIV para crianças/adolescentes que estão em vias de serem adotadas, e somente nesses casos, esta atitude se confronta com aquelas expressadas no documento analisado. Vale acrescentar que a quantidade de crianças/adolescentes abandonadas, com destituição de pátrio poder, aguardando por uma adoção, é relativamente pequeno, comparando-se à totalidade daquelas abrigadas.
A equipe da 2ª Vara da Infância e da Juventude do Recife acredita que a realização do exame sorológico HIV previamente à adoção não só deva fazer parte de um procedimento de rotina – tanto quanto o é a solicitação de exames clínicos e a avaliação física e mental das crianças/adolescentes – como também as protegerá de futuras rejeições e/ou abandonos. Além disso, caso seja diagnosticada a soropositividade, o diagnóstico, o mais precoce possível, permitirá a proteção e o tratamento das crianças/adolescentes, o que lhes garantirá o direito à vida, à saúde, bem como a de outras crianças/adolescentes que com elas convivem, da mesma forma, permite a que se inicie a busca de casais adotantes que tenham o perfil para adotar crianças/adolescentes com tais características.
A quebra do sigilo bastante evocada no referido documento também não atinge tal postura, pois todas as informações daquela criança/adolescente e seus respectivos procedimentos de adoção são, por imperativo legal, de caráter estritamente confidencial, cabendo a todos os profissionais envolvidos com este trabalho e as Instituições de Abrigo obedecer e zelar para que este caráter seja mantido.
Estando os pais biológicos destituídos do pátrio poder, portanto não sendo representantes legais dos filhos, as crianças/adolescentes abrigadas nesta condição estão submetidas à autoridade da Justiça da Infância e da Juventude, sendo de sua competência, nesta condição, buscar colocá-las em famílias substitutas e, durante a permanência no abrigo, providenciar diretamente através das instituições públicas ou privadas, prover-lhes dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e Estatuto no tocante à saúde, educação, lazer, profissionalização, etc. Como tal, só a autoridade judiciária, após manifestações do Ministério Público, pode autorizar a realização de exames invasivos, sempre no melhor interesse da criança.
Finalmente, deseja-se trazer a enorme preocupação do grupo com esta realidade – a de crianças/adolescentes portadoras e possíveis portadoras do HIV – que hoje se nos avizinha muito mais próxima, levando-nos a questionar com uma certa ansiedade sobre o seu futuro, sobretudo quando se verifica o ainda precário estado em que esta questão vem sendo encaminhada e tratada no Brasil. Longe de uma crítica, a Justiça da Infância e da Juventude do recife (2ª Vara) se coloca, ao trazer isto à tona, como parceira na busca de soluções no sentido de que o art. 227 da Constituição federal, em toda a sua inteireza, possa de fato ser garantido e cumprido, pois está nesta garantia e cumprimento a formação dos futuros cidadãos brasileiros.